“Se você estuda a origem do racismo, você consegue combater o racismo. Nós vivemos numa sociedade racista”

A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Jovens negros do sexo masculino morrem como se vivêssemos uma guerra. Cerqueira e Coelho, citados no Atlas da Violência 2017, afirmam que a partir de análises do Censo Demográfico do IBGE concluem que a tragédia que aflige a população negra não se restringe às causas socioeconômicas. Os autores estimam que o cidadão negro possui chances 23,5% maiores de sofrer assassinato em relação a cidadãos de outras raças/cores, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência. Essa realidade contextualiza uma das afirmações do advogado Marco Antônio André: “O racismo é institucionalizado no Brasil.”

Do Diarinho 

Negro, natural da cidade de São Paulo, morador de Blumenau há 11 anos, Marco Antônio cursou a universidade, constituiu família, e hoje, aos 40 anos, é um profissional respeitado. Membro da Comissão Catarinense da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil e participante do Núcleo de Estudos Afros-Brasileiros da FURB, Marco foi vítima recente dos crimes de injúria racial e ameaça. Um grupo que faz apologia ao nazismo panfletou a rua onde fica o escritório de Marco com frases de ódio e símbolos nazistas. A polícia Civil investigou e deteve o grupo acusado pelas agressões.
Marco sabe que a prisão provavelmente não evite novas ações racistas, até porque elas sempre existiram, mas defende que só através da educação os brasileiros vão aprender a respeitar as pessoas, independente da raça, gênero, religião ou condição econômica. Como profissional do direito sabe, também, que a dureza da lei pode ter um efeito pedagógico nos crimes de ódio. Confira a seguir os principais trechos da entrevista do advogado.

“A educação é a principal ferramenta para se combater qualquer tipo de ódio”

“A internet é uma ferramenta que dá vazão ao ódio 
de forma exponencial”

RIGOR DA LEI
“Não foi a primeira vez que fui vítima de injúria racial. Mas foi a primeira vez que eu dei andamento ao caso de forma processual. A partir do momento que eu me torno advogado, membro da Comissão da Igualdade Racial da OAB, membro do Núcleo de Estudos Afros-Brasileiros na FURB, eu começo a entender a importância de tratar este tema, inclusive da forma penal. É uma forma de mostrar à população que este tipo de comportamento é punível. Eu como advogado tenho essa responsabilidade.”

CRIMES DE ÓDIO
“Há um grande problema porque geralmente os crimes de ódio não são divulgados, não se dá publicidade. Mas são crimes que sempre aconteceram. Aqui mesmo em Blumenau, não foi a primeira vez que cartazes como esses foram colados pela cidade. Isso acontece em todas as regiões do Brasil, mas muito mais especificamente nas regiões sul e sudeste. Seria leviano da minha parte fazer uma afirmação, mas as colonizações europeias como um todo são mais fortes nessas regiões, e a influência europeia nessas regiões é maior. Talvez, por conta da história recente na Europa, de uma onda crescente de ódio, aliás onda crescente no mundo todo… Isso pode ser um combustível para que essas pessoas comecem a “sair da toca”, pois antigamente não era explícito. Hoje as pessoas não tem mais vergonha de falar determinadas coisas, achando que a lei não vai alcançá-las.”

REDES SOCIAIS
“Esse movimento de ódio cresce com o advento da internet. Materiais que demoravam meses para chegar, agora chegam em segundos. O boom da internet e das redes sociais torna tudo mais preocupante. O acesso à informação e à desinformação é mais fácil e rápido. Mas esse tipo de comportamento sempre existiu, repito. O fato de vivermos um Fla-Flu ideológico no Brasil também explica o que está acontecendo. Parece que as pessoas estão perdendo o discernimento do que é certo ou errado. O Brasil passa por um momento de conturbação moral tão grande que pessoas se acham no direito de cometer crimes. Acham que não vão ser punidas. A internet é uma ferramenta que dá vazão ao ódio de forma exponencial.”

CIDADANIA
“A educação é a principal ferramenta para se combater qualquer tipo de ódio. No caso do racismo, nós temos a Lei 10.639/2003, uma lei Federal instituída pelo MEC, que determina que no currículo escolar seja ensinada a história da África do ponto de vista africano, não do europeu. A lei não é cumprida pelo governo do Estado, não é cumprida pelos municípios. O próprio Estado brasileiro é racista quando permite que a lei não seja cumprida. Mesmo que haja leis específicas, mesmo que haja um trabalho firme da polícia, como foi no caso aqui de Blumenau, o Estado brasileiro continua sendo racista.”

HISTÓRIA NA ESCOLA
“Renegar o ensino sobre a África, do ponto de vista africano, é um preconceito com a história da África. Nós estamos falando aqui de ancestralidade, de religiosidade, da história de um povo que foi sequestrado, que foi trazido à força para outro continente. A partir desse momento, esse sujeito perde a sua identidade. Quem é esse negro que veio para o Brasil? De onde veio? Quais eram as culturas que ele tinha na origem e que hoje foram esquecidas? Quando você leva para dentro da sala de aula a discussão, esses temas podem ser tratados com outro viés, com outro olhar.”

ESCRAVIDÃO
“É preciso falar o que foi a escravidão de verdade, o que foram os quilombos. A lei 10.639/2003, que não é cumprida, seria uma forma de combater o racismo. Você conta uma história falando que a princesa Isabel, aquela mulher branca, europeia, libertou os negros; ela fica como a grande salvadora. Mas o que aconteceu a esse negro na pós-escravatura? Será que o fim da escravidão não foi uma questão meramente comercial? Por que isso não é tratado sob esse aspecto em sala de aula? Perde-se a oportunidade de tratar de forma pedagógica, de ir à origem do racismo. Se você estuda a origem do racismo, você consegue combater o racismo. Nós vivemos numa sociedade racista.”

COTAS RACIAIS
“As cotas raciais nada mais são do que uma tentativa de reparação financeira à escravidão. Num primeiro momento ela é tratada como uma política pública de ação afirmativa, só que de forma que surte efeito até a “página 2”. Quando se tenta combater a política de cotas, você não reconhece que os negros ficaram fora da escola durante muito tempo. Você não reconhece que o negro tem sido tratado de maneira diferente perante a lei. As cotas são necessárias como uma política de afirmação que ajude o negro a ter uma condição de igualdade.”

MERCADO DE TRABALHO
“Quando o negro entra na universidade ele ainda não é tratado de forma igualitária, mas, pelo menos, tem um instrumento para poder enfrentar o mercado de trabalho. Ainda vai sofrer todos os preconceitos, ganhando menores salários inclusive. E a mulher negra sofrerá o dobro! Hoje, os negros são mais de 52% da população do Brasil. Em quais postos de comando há negros naturalmente ocupando? São raríssimas exceções. Nós temos um exemplo clássico em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; não há um agente do Ministério Público negro. No sul isso acaba se tornando evidentemente mais grave, justamente porque proporcionalmente o número de negros acaba sendo menor. A história da construção de Blumenau registra que os negros também foram trazidos para cá, para construir essa cidade junto com o Dr. Blumenau. Negros escravizados, inclusive. Mas isso não é contado nas escolas. A única pessoa exaltada na construção da cidade é o dr. Blumenau. Mas como aconteceu de verdade? Está registrado no museu, para quem quiser conhecer, mas dentro de sala de aula essa história não é ensinada.”

NEGROS E PARDOS
“Geralmente são os brancos que se sentem afrontados pela posição do negro estar dentro da universidade. Esse argumento costuma ser acompanhando pela célebre palavra “meritocracia”. A pessoa tem que chegar na universidade por mérito próprio, não por cotas raciais. Há uma questão prática sobre essa teoria do colorismo, que é estudada nas universidades, no meio acadêmico, que é a pigmentação da cor da pele. Nós temos os negros e os pardos. Os pardos são os que mais sofrem nessa história. Porque são negros, são classificados como negros, mas a tonalidade de pele acaba sendo mais clara. Em determinadas situações é considerado branco e em outras negro. É um grande dilema para esse ser. Mas quando você nitidamente vem de uma família branca e diz que a sua origem é negra, precisa investigar. Se há alguém que se beneficia da política de cotas sem ser negro, há um crime. Aí é falsidade ideológica. Quando esse cidadão entra na universidade pela lei de cotas, não sendo negro, ele está incorrendo num crime.”

PRESSÃO CONTRA
“Tem que fazer valer a lei das cotas. O que não pode é deixar o discurso vago. Como não há uma universalidade com relação as cotas raciais, cada estado do Brasil fica livre para adotar a política ou não. A lei é falha neste sentido. Porque há uma pressão de uma parcela da sociedade que é contra as cotas, o governo dá uma recuada dizendo: cada estado faz a sua política de cotas. Quando eu digo que o Brasil é um país racista, é porque também é hipócrita, pois cria uma lei, mas deixa esse tipo de brecha. A lei é para beneficiar uma parcela da população evidentemente sofrida e discriminada.”

NA UNIVERSIDADE
“Eu estudei na universidade regional de Blumenau (FURB). Num primeiro momento houve aquele choque. Justamente por eu ser o único negro da turma e não ver outros negros circulando pela universidade. Eu estudei no período da manhã. Ao longo do curso, que durou cinco anos, você vai se deparando com outros negros. Houve discriminações, sim. Eu cheguei a sofrer uma agressão dentro da sala de aula por uma colega que dizia o seguinte: “Aqui não é teu lugar! Volte para tua terra!” Eu sou paulistano de origem. A colega disse que ali não era o meu lugar. Naquele momento eu me senti afrontado, constrangido, injuriado, só que não tomei nenhum tipo de providência. Eu senti aquilo tão cruel. E não houve amparo dos colegas. Isso acontece com muitas vítimas de racismo e de injúria racial. É um tipo de crime no qual a vítima ainda se sente um pouco culpada. Às vezes pensando: “talvez, ali não fosse o meu lugar.” No ambiente da universidade privada, há uma incidência maior de negros. Porque é o único espaço em que o negro consegue entrar. Ele não consegue entrar na Federal porque o ensino que ele teve não foi dos melhores. Ele tem que dar um jeito de pagar a universidade. Aí entra a discussão da necessidade de uma política de cotas de fato no Brasil.”

BRASIL RACISTA
“Quando eu digo que o Brasil é um país racista é porque o Estado é racista. O estado brasileiro não tem políticas públicas que combatam o racismo de forma institucional. Ainda se tem a questão da branquitude que é não enxergar o negro em algumas posições, como a minha, de advogado. Daí você tira algumas experiências, pessoais inclusive, para entender como funciona o racismo. Quando eu, como advogado, sou tratado numa audiência pelo juiz como “pai do acusado” e não como advogado deste acusado, este juiz está cometendo um crime de racismo institucional. Ele não teve a capacidade de perguntar se eu era o advogado. Ele deduziu, pelo fato de eu ser negro, e o acusado também ser negro, que eu não era o advogado. Naquele momento eu informei que eu era o advogado do acusado e o juiz meio que fingiu que nada aconteceu. Mais uma vez, eu me vejo numa situação em que eu preferi tocar a audiência porque o mais importante era a situação do preso. Deveria ter tomado outra atitude, mas não tomei. Por quê? Porque eu fui a vítima. Me senti congelado. Estava em início de carreira, inexperiente em como me portar com aquele juiz.”

FORMAS DE RACISMO
“Ainda há uma seletividade com relação a questão de enxergar o racismo. Determinadas pessoas dizem que racismo é “mimimi, é vitimismo, que essa discussão está superada, porque somos todos humanos…” Bom, somos todos humanos, mas deveríamos ser tratados igualmente perante a lei, como diz a Constituição Federal. Mas não somos todos tratados de forma igual. E quando você trata de questões raciais, pior ainda. No caso da atriz global Taís Araújo, que denunciou que o filho sofre racismo, estou falando de uma mãe negra, famosa, que sofre um tipo de preconceito racial. As pessoas até se comovem, mas pensam: “ah, ela já deve estar acostumada.” Existe o racismo institucional, o racismo policial, o racismo do Estado com relação às políticas públicas. Isso se demonstra na mobilização maior em forma de reação ao racismo sofrido pela Titi, que é filha dos atores brancos Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank. Mais reação do que no caso da Taís Araújo. Se a gente pudesse resumir o tema, diria: mesmo a Taís Araújo sendo uma atriz de sucesso, por ela ser negra, é vítima de preconceiro.”

A AGRESSÃO
“Foi uma coisa direcionada a mim. Até pelo fato do negro advogado incomodar numa sociedade em que boa parte das pessoas é racista. Incomodados com o negro que se tornou advogado e ocupa um espaço que, na cabeça deles, não era o espaço de um negro. Quando eles colam um cartaz na porta do meu escritório dizendo: “negro, macumbeiro, antifa, comunista, estamos de olho em você…” É uma forma de tentar me intimidar nos trabalhos que faço, tanto na comissão de Igualdade Racial da OAB, como no grupo de estudos. Se eu fizer uma análise muito fria: minha luta na cidade é justamente para me auto afirmar como negro advogado porque isso ainda precisa ser feito. Não sou apenas um advogado, eu sou um negro advogado, eu não sou mais um, eu sou o Marco Antonio. Essa é a minha identidade, me reconheço como tal. Quando eu passo a me autoafirmar, isso passa a incomodar, talvez daí venha o ódio. Foi um cartaz direcionado a mim, porque foi colado na porta do meu escritório; uma coisa pessoal.”

LEGADO AO FILHO
“Eu tenho um filho de 12 anos que também já enfrentou situações de racismo. E só me relatou que passou por isso, quando eu me tornei vítima do grupo neonazista. Ele disse: “Pai, eu também fui vítima de racismo, e hoje eu vi que foi racismo.” O que eu digo para ele é o seguinte: “Filho, aconteceu o problema? Relata para alguma autoridade.” O impulso do meu filho foi pegar o menino pelo braço. Jogou o guri para o outro lado da sala de aula. Meu filho foi punido pela agressão. O outro menino, posteriormente, foi punido também, mas depois de muita discussão tentando explicar o que aconteceu. O fato mais grave (o racismo) acabou sendo o mais irrelevante.”

CABEÇA ERGUIDA
“Digo ao meu filho para andar de cabeça erguida. O fato de ele ser negro não o difere, não o torna melhor ou pior do que ninguém. O fato de ser negro apenas dificulta a situação dele, que vive numa sociedade racista. Mas continua tendo que respeitar a todos: brancos, mais velhos, precisa respeitar qualquer tipo de relação amorosa, sendo homoafetiva ou não. Precisa respeitar as pessoas, independente da condição que ocupem, independente da condição que esteja, sendo branca ou negra. Respeito! Você respeitar as pessoas não significa que você será tão respeitado quanto merece, mas a sua parte você está fazendo. Dentro da minha religião, do candomblé e da umbanda, a gente aprende muito que o respeito, especialmente o respeito aos mais velhos, a ancestralidade por trás daquela pessoa que é mais velha, é tão importante quanto qualquer história de narrativa. Respeito até para tratar o criminoso. Essas pessoas que cometeram o crime contra mim, e que cometem esses crimes pelo Brasil afora, também merecem ser respeitadas dentro do rigor da lei. Elas merecem o direito ao contraditório antes de serem punidas.”

BLUMENAU
“A população de Blumenau não é racista. A grande maioria, a imensa maioria, a esmagadora maioria, é formada por pessoas de bem, pessoas trabalhadoras, independente de serem de origem alemã ou italiana, ou de outras origens. Uma minoria cometeu esse crime. Isso precisa ficar claro. Preciso destacar a importância do trabalho da polícia Civil de Blumenau. Através do Dr. Lucas com a ajuda do Dr. Egidio. Eles conseguiram fazer toda a operação para prender os acusados. Dr. Lucas deu toda a importância ao crime, houve uma investigação que culminou na operação que prendeu essas pessoas com a ajuda da DIC Blumenau. Importante ressaltar o trabalho da polícia. Há um histórico de violência policial contra o jovem negro no Brasil. Isso é fato. Mas não podemos generalizar. Nunca podemos. O trabalho bem feito precisa ser reconhecido, até porque a estrutura de trabalho que esses homens e mulheres têm é algo que chega a ser cruel. Eles precisam se dobrar em 50 para fazer um trabalho decente.”

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