ROSA DE LIMA analisa livro de ABDIAS NASCIMENTO, Genocidio do Negro

O racismo nunca saiu da pauta nacional e o conceito da “democracia racial” já foi desestabilizado há anos, desmoralizado. Ainda assim, há aqueles que ainda o defendem ou se não o defendem abertamente com receio de serem enxovalhados, o praticam nos seus atos e na surdina. Felizmente, o Brasil avançou bastante em conquistas para a comunidade negro-mestiça, ainda não a ponto do que merece, isso, graças as lutas e organizações dos negros e mestiços com seus grupos estabelecidos em diversos segmentos da sociedade, das artes aos meios juridicos; da politica a religião, e de um florescente sentimento de empoderamento.

Até para continuar entendendo esse processo e atualizar-me das questões relacionadas ao racismo reli, recentemente, o clássico da literatura nacional “O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado”, de Abdias Nascimento, com textos complementares de Florestan Fernandes, Wole Soyinka e Elisar Larkin Nascimento (Ed Perspectiva, 2017, apoio do Itaú Cultural, 228 páginas, R$35,00) que é a publicação mais esclarecedora de como o racismo sempre existiu no Brasil, em toda sua história, de forma dissimulada, mascarada, dando a entender ao mundo de que vivia-se nos trópicos brasis numa democracia racial, em paz, sem um apartheid, todos coexistindo numa boa.

Em parte, de fato, isso acontecia observando-se apenas o lado da não existência de conflitos permanentes como os EUA e na África do Sul, mas, o que era mais chocante e cruel, acontecia (e ainda dá-se) um genocidio institucionalizado, sistemático, silencioso. E praticado pelas autoridades como se isso não existisse.

O livro de Abdias do Nascimento foi escrito em plena ditadura militar, relatos dos anos 1977, a propósito do Primeiro Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, Daccar, 1966, mas, sobretudo a reprodução de um ensaio que o autor escreveu a pedido do professor Zio Zirimu para o Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, Lagos, Nigéria, 1977.

O trabalho de Adias deveria ser apresentado numa conferência pública do colóquio, na Nigéria, mas, foi rejeitado pelo ‘establishment’, segundo expressão do professor Zirimu.

E o que contém de tão alarmante o texto de Abidas?

A narrativa sem meias palavras mostrando que o racismo no Brasil é perverso e consentido desde os tempos da Colônia, e o autor não perdoa nem o padre Antonio Vieira nem o poeta Gregório de Mattos, ambos em sua ótica racistas, e mostra que com o advento do Império e depois com a República pouco ou quase nada mudou, salvo a luta dos próprios negros-mestiços, desde Palmares a alguns abolicionistas, a realidade atual até os anos 1970 e o genocidio reinante, araigado na sociedade brasileira.

Abdias é um revolucionário, um radical no sentido pleno da palavra em defender a dignidade para os negros e mestiços, a igualdade, a reparação, e critica as posturas racistas de Jorge Amado, Pierre Verger, Gilberto Freire, José Veríssimo, Monteiro Lobato, Nina Rodrigues, Prado Valadares, Thales de Azevedo e vários outros atores e autores nacionais, isso feito com documentação, com citações de textos e atitudes dessas pessoas.

E, sem acusar esse ou aquele general de plantão no governo (o ensaio foi feito na ditatura militar 1964/1984), revela que o racista Instituto Rio Branco, do Itamarati, mantinha a mesma política segrecionista da República Velha.

O livro é um tapa na cara da sociedade brasileira. Evidente que nem todos brancos são racistas e estão no comando dos governos e igualmente sofreram na pele preconceitos e dificuldades assemelhadas aos negros e mestiços, mas, a elite branca politica e econômica, e boa parte da intelecutal e acadêmica – e esse é o fulcro da questão – não mexia uma palha – salvo exceções e cita positivamente Roger Bastide e Florestan  Fernandes – para modificar o ‘status quo’ mantendo o negro acorrentado sob os grilhões da dissimulação, da tal falácia de democracia racial.

Cita Abdias o capítulo III – Exploração sexual da mulher africana: “O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal de familia e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, não só durante a escravidão. Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa de sua condição de pobreza, ausência de status social, e total desamparo, continua a vítima fácil, vulnerável a qualquer agressão sexual do branco”.

E esculacha Verger: “Os ideólogos da ‘democracia racial’, são, com efeito, incansáveis, não arriam a bandeira do ‘intercasamento’. Vão em frente ativamente fazendo o elogio dessa norma que advogada implicitamente a prostituição e o estupro sistemático  e permanente da mulher africana e dos seus descentens. Pierre ‘Fatumbi’ Verger, por exemplo, está atualmente, não só justificando mas aplaudindo essa violência sexual contra a mulher africana e isso acontece na Universidade de Ifé, Nigéria”.

livro contém XV capítulos com a conclusão e um deles é dedicado a igreja católica e as autoridades opressoras contra a prática do candomblé e outras religiões africanas praticadas no país, uma perseguição sistemática que vem dos tempos imemorias da colonização jesuítica, devastadora das culturas locais nativas, e depois sistemáticamente opressora dos cultos religiosos dos negros.

Abdias abomina o sincretismo religioso e o papel das ordens religiosas no país, especialmente na Bahia, e diz que não se deve misturar santos com orixás, as divindades sagradas do candomblé. Vai além e destaca que houve (e há) uma persistente perseguição a cultura africana no Brasil.

No final do ensaio, AN propõe algumas políticas públicas e recomendações ao governo brasileiro, entre outras atitudes, que estimule e encoraje a formação e o desenvolvimento de uma liderança política negra, representando os interesses específicos da população afro-brasileira no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas Estaduais e Municipais; e nomei negros para o STF, STE, STM, STT e TFR, para os ajustes a realidade do país.

Aqui não dá para descrever todos os pontos analisados por Abdias daí a importância de ter esse livro e lê-lo.

Por fim, na atual publicação, Elisa Larkin Nascimento, escreve sobre o “Genocídio no Terceiro Milênio” (texto atual 40 anos após o libelo de AN) e releva alguns avanços que já aconteceram na sociedade brasileira, o impacto de muitos movimentos em defensa e afirmação da cultura negra, o impacto do hip-hop e do rap, mais recente, inspirador de organizações comunitárias “cuja criatividade caminha hoje junto a uma ação sociopolitica de grande relevância”. a política de cotas, o empoderamento, o Prouni e outras políticas federais, estaduais e municipais, e a posição dos negros-mestiços na sociedade, ainda hoje, num plano secundário e sem atingir o que de fato merece.

“O Gernocído do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado” é desses livros que se deve ter sempre ao alcance das mãos e os olhos para leitura renovada e esclarecedora.

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