Sem horizonte para ter uma mulher negra como ministra no STF

Ausência dessa representação na corte se mantém por mais de um século


Esta semana, voltou à tona, com toda força, o debate sobre a ausência de indicação de uma ministra negra no STF (Supremo Tribunal Federal). O anúncio da indicação do ministro da Justiça, Flavio Dino, para ocupar a vaga deixada pela ex-ministra Rosa Weber, trouxe, a um só tempo, pela imprensa e redes sociais, certo tom de revolta e desencanto para quem, militando da ideia da postulação de uma mulher negra para o cargo, contava, depois de tantas campanhas e debates, com a sensibilidade governamental, passados 132 anos da criação daquele tribunal superior, em 1891.

Ao proclamar, na segunda (27) os favoritos ao STF e à PGR (Procuradoria-Geral da República), este último no nome do advogado Paulo Gustavo Gonet, o mandatário da nação afrontou e frustrou a expectativa do movimento negro do país, que tem trabalhado arduamente para convencer o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e a opinião pública, da importância de alçar ao posto mais elevado da magistratura, uma representante negra feminina para o lugar.

No entanto, tal contrariedade faz todo sentido em um país como o Brasil, fundado na exploração da mão de obra escravizada e cujos fundamentos do Poder Judiciário brasileiro não majoritariamente referendados por pessoas brancas –sobretudo homens brancos—, desde os primórdios da construção do país, ou seja, período colonial ao advento do projeto republicano.

Para se ter ideia, após mais de cem anos, apenas três cidadãos negros –veja só, nenhuma mulher– ocuparam os altos assentos do órgão defensor da Constituição brasileira. Foram eles, pela ordem de ocupação da Corte, o jurista Pedro Lessa, que ocupou o lugar de 1907 a 1921, Hermenegildo de Barros, de 1919 a 1937, e, por último —pasmem!— , Joaquim Barbosa, de 2003 a 2014, quando se aposentou, tendo também sido o único negro a presidir o Supremo Tribunal Federal.

Durante o mandato dos dois primeiros ministros citados, o Brasil foi governado por dois dos mais importantes presidentes negros do país, dos quatro que tivemos, notoriamente de sangue negro-africano: Rodrigues Alves, que teve dois mandatos quase consecutivos, e Nilo Peçanha, com um mandato tampão, mas profícuo, entre 1909 e 1910.

Não quero hoje citar qualquer órgão ou entidade que luta para emplacar uma mulher negra nas cadeiras do STF. A bem da verdade, é uma reivindicação no esteio da luta do povo negro brasileiro, ante injustiça histórica, falta de visão estratégica e econômica e racismo misógino a uma parcela representativa da sociedade negra –sabemos que pretos e pardos contam 55,8% de toda a nossa população.

Não há razão para uma não indicação. Pelo contrário. Os pressupostos estão postos e são evidentes. Tapar os olhos para essa demanda, praticamente uma vontade popular, é menosprezar o desejo, a vontade, a urgência dos que, pelo seu antepassado, edificaram este país com suor e sangue.

Para a supremacia branca –cujo alicerce é o pacto da branquitude–, manter os negros na senzala moderna, fora do poder de decisão, é mostrar que lugares como o Supremo e outros escalões não são para seu bico. Incute-se com isso uma ideia de que o acesso a esses lugares “nobres” só serve para os negros em funções subalternas –empregados de limpeza, porteiros de edifícios, copeiros, engraxates e garagistas, onde a maioria das ditas “autoridades” guardam seus veículos blindados.

O Brasil, como já disse, foi enraizado na indústria da escravidão por mais de 350 anos. Dois terços desse período foram na exploração da gente escravizada; depois da Abolição, em 1888, foram mais cem anos de negação, apagamento, ofensa, violência e extermínio do povo negro, independente de idade e sexo, em todo o território nacional.

Tudo contabilizado, sobrou pouco para ajustar uma sociedade onde o Judiciário e o sistema educacional servem apenas aos interesses da manutenção do poder para quem está nele desde abril de 1500.

Mudar esse paradigma é dificílimo, ainda mais sem vontade política e uma voz pujante que confronte e abale o status quo nacional, como fez a seu tempo o advogado e poeta Luiz Gama, quando, pautado em suas origens, trajetória de vida e luta, chegou a dizer: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre por legítima defesa”.

Não há nenhuma intenção aqui de eliminar ninguém, mas o digo pela defesa da honra, do princípio de equidade racial, pelo princípio da ética moral e pública. Gama libertou centenas de seres humanos, presos sob correntes de opressão e do medo, impostos pela ganância e privilégio branco.

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