Durante muitos anos, como estudante de doutorado e depois como pesquisadora na USP (Universidade de São Paulo), senti, repetidas vezes, o desconforto e o estranhamento das pessoas diante de minha presença e circulação em certos espaços da universidade.
Participando de bancas examinadoras de mestrado e doutorado, o estranhamento de ter uma mulher negra nesse lugar acadêmico aparecia de maneira mais intensa.
De certa maneira, o olhar que expressa a pergunta “o que faz você aqui?” é uma das tantas possibilidades de reação de profissionais de instituições brasileiras diante da presença negra em lugares onde ela não era esperada. Reflete ainda o longo caminho a percorrer no território do enfrentamento do racismo institucional por organizações públicas ou privadas.
Com a ampliação da presença da juventude negra na universidade, com certeza essa reação se acentua.
Lembrei-me muito dessas ocorrências nos últimos dias após o suicídio de jovens negras e negros na USP. E a contundente carta de docentes negros exigindo medidas urgentes, já que, antes dos trágicos desfechos, não faltaram pressão, denúncias e alertas ao longo dos anos, evidenciou que é preciso uma atuação mais sistêmica da universidade diante dos desafios enfrentados pelo seu alunado negro.
O sentimento de não ter um lugar, de não pertencer, sentir-se rejeitado e humilhado que ocorre nesses episódios se encontra entre os elementos que podem provocar a depressão e o suicídio.
Assim, um dos grandes desafios que constatamos na atualidade, período em que vem se intensificando e se tornando cada vez mais visível o debate sobre racismo, é provocar as instituições públicas e privadas a olhar para si próprias de modo a identificar em sua estrutura os sinais do que as tornam tão excludentes e inóspitas, principalmente para a população jovem e negra.
De quantas diferentes maneiras sinalizam “aqui não é seu lugar”?
Há inúmeros estudos mostrando como o eurocentrismo se manifesta nos currículos, nas bibliotecas, nos espaços físicos, no perfil das lideranças institucionais, de professores e alunos, nos espaços universitários brasileiros.
E uma pressão crescente da juventude negra vem questionando esses espaços monolíticos e monocromáticos.
E aí surge o medo. Medo da derrubada de tudo que assegurou os privilégios da branquitude, nas diferentes instâncias da universidade, em particular o temor da derrocada do “sistema meritocrático”, que, desconsiderando as históricas desigualdades de pontos de partidas e de enfrentamento cotidiano da discriminação, afirma que “os que têm competência se estabelecem”.
No entanto, não são apenas mais “caras pretas” na universidades. São outras experiências de vida, que se deram em outros tipos de território e que anunciam a urgente e inevitável democratização dos espaços universitários.
A pandemia vem intensificando os desafios desse contexto enfrentado pela população que está entre aqueles que mais vão a óbito pela Covid-19, pela sua própria situação de vulnerabilidade no país. Sem dúvida a população jovem e negra tem muitas razões para se sentir angustiada, sem saída.
Nada mais ameaçador do que saber que o jovem negro, entre 10 e 29 anos de idade, compõe o perfil das pessoas que mais cometem suicídio no Brasil, segundo o Ministério da Saúde (2019), num cenário no qual não existem políticas públicas específicas de prevenção.
Também são jovens de até 29 anos aqueles mais sujeitos à violência letal das forças policiais, segundo o Mapa da Violência de 2020.
Assim, a criação de instâncias institucionais que possam assegurar a efetividade do direito à educação, conforme define nossa Constituição, torna-se urgente.
Essas novas instâncias, se alinhadas aos princípios da equidade racial, têm grandes chances de transformar a universidade em um lugar acolhedor e saudável para os alunos que passaram a frequentá-la com maior presença nos últimos anos.
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