“Racismo estrutural contribui para naturalização do trabalho infantil”

Enviado por / FonteDW, por Edison Veiga

Dos quase 1,8 milhão de crianças e adolescentes brasileiros que trabalham, dois terços são pretos e pardos. Autora de livro sobre o assunto, jornalista luta para desconstruir o mito de que trabalhar desde cedo é bom.

Desde 2016, por conta de uma pesquisa de campo desenvolvida pela organização não governamental Cidade Escola Aprendiz, os jornalistas Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano passaram a ver de perto a realidade de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Ela, apurando e escrevendo sobre. Ele, fotografando.

Parte das histórias com que eles se depararam foi reunida no livro-reportagem Meninos Malabares: Retratos do Trabalho Infantil no Brasil, que a editora Panda Books lança nesta quarta-feira (09/06).

De acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, quase 1,8 milhão de crianças e adolescentes no país vivem nessa situação. “Mas acreditamos que esse número seja subnotificado e, infelizmente, não corresponda à realidade. Existem várias formas de trabalho infantil que são de difícil identificação”, afirma Ribeiro.

Esses trabalhadores infantis fazem parte da paisagem urbana de grandes cidades brasileiras, como São Paulo. São crianças que vendem bugigangas nos faróis, adolescentes que trabalham como atendentes em lanchonetes e bares, catadores de lixo que sobrevivem graças ao que arrecadam vendendo para reciclagem.

Mas também são os que executam trabalho doméstico ou mesmo subsistem graças ao que ganham a partir da ilegalidade, atuando no tráfico de drogas ou sendo violentados pela prostituição infantil. E também aqueles que pedem esmola.

“A mendicância também é considerada forma de trabalho infantil”, explica a autora do livro em entrevista à DW Brasil. “Porque aquela criança, aquele adolescente, está naquela condição lutando pela sua subsistência, ou pela subsistência da família, é uma forma de ela adquirir renda ou alimento.”

Em entrevista, Ribeiro ressalta que o trabalho infantil está ligado ao racismo estrutural no país, sendo que dois terços das crianças e adolescentes nessa situação são pretos e pardos. “A defesa do trabalho infantil está amparada no nosso racismo estrutural, na constituição histórica do país. Naturalizamos o trabalho infantil para uma parcela da população”, afirma.

DW Brasil: O que é, afinal, trabalho infantil?

Bruna Ribeiro: Basicamente é toda forma de trabalho realizada por crianças e adolescentes abaixo da idade permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o trabalho é permitido de todas as formas a partir dos 18 anos, e permitido de forma protegida, ou seja, não pode ser insalubre, noturno ou perigoso, a partir dos 16 anos. Como aprendiz, [pode ser exercido] a partir dos 14 anos. Até é interessante falar sobre a lei de aprendizagem, porque quando a gente fala do adolescente, de certa forma é até permitido o trabalho, mas dentro da lei, que concilia trabalho e educação. O aprendiz precisa ter frequência escolar, horário reduzido e, além de trabalhar, também receber formação profissional.

São muitas as formas de trabalho infantil e muitas vezes essa violação é naturalizada, a gente acaba não enxergando. Mas o trabalho infantil está na criança que vende amendoim no farol, que vende pano de prato, que vende bala nos bares ou até mesmo em uma criança ou adolescente pedindo dinheiro na rua. A mendicância também é considerada forma de trabalho infantil. Porque aquela criança, aquele adolescente, está naquela condição lutando pela sua subsistência, ou pela subsistência da família, é uma forma de ela adquirir renda ou alimento.

E quanto são os que estão nessa condição no Brasil?

O dado mais recente que a gente tem, de 2019, fala em 1,786 milhão de crianças e adolescentes trabalhando no Brasil. Mas acreditamos que esse número seja subnotificado e, infelizmente, não corresponda à realidade. Existem várias formas de trabalho infantil que são de difícil identificação. […] Como você contabiliza o trabalho doméstico, que ocorre dentro das casas? Como contabiliza o tráfico de drogas como uma forma de trabalho infantil? A gente tem certeza que esses adolescentes não estão nas estatísticas. É importante ressaltar que 66,1% [dos trabalhadores infantis] são pretos ou pardos, ou seja, correspondem à população negra. A gente costuma dizer que o trabalho infantil no Brasil tem cor e classe social. Quando falamos sobre as crianças que estão nessa situação, estamos falando de uma camada [específica] da população. […] Entendemos hoje que na agenda do enfrentamento ao trabalho infantil é preciso falar do enfrentamento ao racismo estrutural.

A pandemia piorou esse cenário?

Os dados do IBGE são de 2019, e a gente só vai ter essa dimensão do impacto da pandemia no trabalho infantil na próxima pesquisa. Mas já sabemos, a partir de análises de especialistas e organizações da sociedade civil, que houve, sim, um aumento do trabalho infantil, um agravamento bastante relevante. Tem uma pesquisa da Unicef que mostra que o trabalho infantil aumentou 26% entre os meses de maio e julho de 2020 em São Paulo. É um recorte específico, mas demonstra esse aumento. […] É muito preocupante. Durante a apuração do livro, nos deparamos com muitas histórias de crianças indo para a rua pedir alimento [em consequência da crise decorrente da pandemia].

Ainda persiste na sociedade o discurso de que “trabalhar desde cedo é bom” ou de que “melhor criança engraxando sapato do que roubando ou usando drogas”. Como combater essa romantização do trabalho infantil?

A defesa do trabalho infantil está amparada no nosso racismo estrutural, na constituição histórica do país. Naturalizamos o trabalho infantil para uma parcela da população. Quando a classe alta vai pensar no seu filho, por exemplo, ela pensa no quê? Numa escola integral, no inglês, no acesso aos esportes, às artes, no desenvolvimento integral dessa criança e adolescente. Temos de tomar muito cuidado. Essa naturalização do trabalho infantil não é para todo mundo. [Mas para as classes mais baixas] aí persiste esse discurso de que trabalhar desde cedo é bom: é o que a gente chama dos mitos do trabalho infantil, mitos reproduzidos pela nossa sociedade por toda essa questão cultural de aceitação do trabalho infantil por determinadas pessoas. Como se realmente a única alternativa para essa criança negra pobre fosse ou trabalhar ou roubar, ou trabalhar ou ficar em casa sem fazer nada. Tais mitos condenam essas pessoas a apenas essas duas alternativas, quando na verdade a alternativa precisava ser acesso a educação, saúde, moradia digna, convívio familiar e comunitário saudável. Nosso discurso como sociedade precisa ser a promoção desses direitos, e não escolher entre roubar e trabalhar. É muito cruel condenarmos essas crianças e adolescentes a apenas essas duas escolhas.

É preciso ressaltar a violência do trabalho infantil…

O trabalho infantil traz consequências muito graves. Físicas, psicológicas…. A exclusão escolar é uma consequência do trabalho infantil. Caminham juntos. À medida que a criança trabalha ela rende menos na escola. O trabalho infantil é reprodutor do ciclo da pobreza, geralmente o pai [da criança em condição de trabalho infantil] também trabalhou desde cedo.

Em mais de uma situação, o presidente Jair Bolsonaro defendeu o trabalho infantil. Em agosto do ano passado, disse que eram “bons tempos” quando uma criança podia trabalhar em um bar. Pouco tempo depois, em uma live, chegou a reclamar de quando o Ministério do Trabalho fiscaliza quem dá emprego a menores. Em sua opinião, de que forma esse tipo de discurso acaba naturalizando a exploração do trabalho infantil e dificultando que essa prática seja coibida?

Realmente o presidente defendeu em algumas circunstâncias o trabalho infantil reproduzindo esse discurso de naturalização, como se o trabalho infantil fosse bom. É lamentável. Em nosso livro, buscamos conscientizar a população a respeito das consequências do trabalho infantil. Às vezes a pessoa tem uma ideia, nem é por maldade, de que o trabalho dignifica, que vai fazer bem. É uma cultura que precisa ser desconstruída. […] Quando o presidente produz esse tipo de discurso a gente sabe que ele, como líder do país, tem uma influência grande nas pessoas e é muito triste que ele, talvez por desinformação, reproduza esses mitos sobre o trabalho infantil. O ideal seria a gente desconstruir esses mitos.

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