Sete pitacos sobre o carnaval

A festa tem todas as condições de ser uma das grandes fontes de ofício, arrecadação tributária e bem viver

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo)

Reza a lenda que, no Brasil, o ano novo só começa, de verdade, depois do carnaval. Antes de brindar a um 2020 que — assombrado pela instabilidade econômica global, codinome coronavírus, e pela democracia local em teste permanente — se anuncia difícil, cabe o balanço da folia.

1) A vitória da Unidos do Viradouro é prova de que planejamento, estrutura e solvência financeira são elementos essenciais ao carnaval das escolas de samba. A festa é importante demais, sobretudo sob o ponto de vista das tradições culturais e da construção de identidade do povo do Rio de Janeiro. Mas pode ter papel relevante na geração de trabalho e renda na indústria criativa, vocação local e um dos motores da moderna economia. O carnaval tem todas as condições de ser uma das grandes fontes de ofício, arrecadação tributária e bem viver dos que habitam a Região Metropolitana. Segue calendário sazonal, ligado ao ciclo de produção de fantasias, alegorias e adereços da Cidade do Samba e à data dos desfiles. Mas opera o ano todo nas quadras e arredores, com ações de educação, cultura, lazer e, mais recentemente, com os ensaios técnicos semanais, que rendem sustento para muitas famílias. Tudo isso muito bem distribuído pelas zonas Norte e Oeste da capital, bem como em cidades como Niterói, Duque de Caxias e Nilópolis. “O carnaval precisa ser apoiado, porque promove o desenvolvimento, gera emprego, renda, atrai turistas e mexe com a economia local”, declarou o prefeito de Niterói, Rodrigo Neves, que destinou R$ 2,5 milhões à escola campeã. A prefeitura do Rio suspendeu o repasse de verbas às escolas de samba, e o governo estadual só na semana da festa conseguiu viabilizar o repasse de uma empresa privada.

2) O espetáculo saiu — e foi bonito. Mas custou trabalho duro e precarizado de muita gente. O carnaval das escolas de samba é uma indústria capaz de empregar profissionais de todos os níveis de formação. É inclusivo e demanda escala, mas precisa do setor público como articulador de contrapartidas que garantam aos artistas e colaboradores respeito a legislação trabalhista, normas de segurança e justa remuneração.

3) A renovação, iniciada com a contratação de Leandro Vieira pela Mangueira para o carnaval 2016, ganhou musculatura com a estreia no Grupo Especial das duplas de carnavalescos de Viradouro e Grande Rio. Marcus Figueiredo e Tarcísio Zanon levaram o título; Gabriel Haddad e Leonardo Bora, o vice. Os cinco passaram pela Série A, celeiro de bambas. Como no futebol, as divisões de base do mundo do samba precisam e merecem apoio, porque delas depende o futuro da festa.

4) Nomes consagrados do espetáculo carnavalesco não colheram bons resultados. Renato e Márcia Lage, campeões de outros carnavais na Mocidade e no Salgueiro, amargaram a sétima colocação no primeiro carnaval na Portela. Carlinhos de Jesus, que já concebeu comissões de frente inesquecíveis, não recebeu nenhuma nota 10 na escola de Oswaldo Cruz; acabou desligado ontem. Laíla, mítico diretor de carnaval de Salgueiro e Beija-Flor, da qual se desligou há dois anos, foi rebaixado com a União da Ilha. Rosa Magalhães, maior campeã da era Sambódromo com a Imperatriz, não conseguiu manter a Estácio de Sá na primeira divisão. Paulo Barros, campeoníssimo, amargou o segundo nono lugar em três anos.

5) Nas quatro primeiras colocações ficaram escolas que reverenciaram divindades das religiões afro-brasileiras e ameríndias: Viradouro (Oxum e Xangô), Grande Rio (Caboclos, Exu, Oxóssi, Iansã), Mocidade e Beija-Flor (Exu). As agremiações não tiveram medo de tocar no vespeiro da intolerância religiosa, crescente no Rio. Que bom.

6) Enredos de homenagem a pessoas negras se destacaram. Ganhadeiras de Itapuã (Viradouro), Joãozinho da Gomeia (Grande Rio), Elza Soares (Mocidade), Benjamim de Oliveira (Salgueiro) e o Jesus negro (Mangueira) agradaram aos julgadores e voltarão à Passarela do Samba amanhã.

7) A escassez de patrocínio privado deu liberdade de criação a carnavalescos e compositores. O resultado foi uma safra boa de desfiles embalados por bons sambas, desamarrados das imposições de localidades, marcas e produtos. O regulamento pode avançar nessa direção, garantindo contratos que não alcancem as histórias.

O carnaval carioca, perseguido e desacreditado, resiste. É a melhor notícia para uma cidade sitiada pela inépcia. Feliz ano novo.

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