O carnaval é de Elza

Ela guarda na própria trajetória a história das negras brasileiras

Por Flávia Oliveira , do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

O carnaval 2020 do Rio de Janeiro já tem dona — mesmo que o resultado oficial dos julgadores desminta. Atende por Elza Soares, codinome Deusa. Nascida no século XX, precisou de um novo milênio para ser compreendida e reverenciada. Coisa de pessoa atemporal, como ela mesma se definiu em mesa no Salão Carioca do Livro, ano passado. Elza é a ancestral encarnada que guarda na própria trajetória a história das mulheres negras brasileiras. Não há um solitário capítulo de sua vida que não se conecte a dramas, tragédias e vitórias das conterrâneas de hoje e outrora.

Experimentou sexualização precoce, casamento infantil, violência doméstica, agressão por arma de fogo. Sofreu racismo, machismo e assédio moral no mercado de trabalho. O episódio inaugural da carreira, no qual se apresenta no programa de Ary Barroso, é prova. “De que planeta você veio, minha filha?”, indagou o apresentador à menina mirrada e empobrecida. “Do planeta fome”, ela respondeu. E cantou. Impôs-se pela combinação de coragem e talento.

Elza foi mãe jovem e passou pelo luto de perder um filho. Na carreira, atravessou temporadas de sucesso e ostracismo. Amou e foi amada. Assumiu relacionamento com um homem casado, Garrincha, ídolo nacional, e pagou preço alto em reputação maculada. Conviveu com depressão e alcoolismo do companheiro. Sustentou família. Adoeceu e recuperou-se. Caiu e levantou.

É protagonista de uma saga que atravessa as estatísticas nacionais de violência de gênero e vulnerabilidade social. Tem lugar de fala, conceito tão bem explicado em livro pela filósofa Djamila Ribeiro. Não à toa, convoca mulheres brasileiras a denunciarem a violência que sofrem de namorados, maridos e ex, como em “Maria da Vila Matilde”, do álbum “A mulher do fim do mundo” (2015). “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180, vou entregar teu nome e explicar meu endereço”, cantou em versos precisos de Douglas Germano.

A história dessa entidade distribuidora de liberdade —palavras do jornalista Fábio Fabato, autor da sinopse do enredo “Elza Deusa Soares”, concebido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos — vai passar na Marquês de Sapucaí na madrugada da Terça-Feira Gorda no desfile da Mocidade Independente. A escola de Padre Miguel, Zona Oeste do Rio, enfileira homens que lhe deram musculatura: de Mestre André, na bateria, a Castor de Andrade, o bicheiro; de Fernando Pinto a Renato Lage, ambos carnavalescos. Mas foi pela voz feminina e rouca de Elza que a verde e branco caiu na boca do povo: “Salve a Mocidade, Salve a Mocidade”.

O carnaval 2020, esvaziado dos patrocínios de localidades e marcas que limitavam a criatividade dos artistas, se estruturou em eixos bem definidos de enredos. No bloco de homenagens, tem, além de Elza, o pai de santo Joãozinho da Gomeia na Grande Rio; as Ganhadeiras de Itapuã na Unidos do Viradouro; o palhaço Benjamin de Oliveira no Salgueiro. São todos personalidades negras, entre as quais cabe incluir o Jesus Cristo a ser apresentado por Leandro Vieira na Mangueira, campeã de 2019.

No eixo religiosidade, além da verde e rosa está a tricolor de Duque de Caxias e a Paraíso do Tuiuti, que vai mesclar a existência fantástica de Dom Sebastião, rei de Portugal, à do santo católico homônimo, padroeiro do Rio de Janeiro, Oxóssi no sincretismo afro-brasileiro. Por fim, valorização e/ou reencontro com territórios de origem, síntese dos temas escolhidos por Unidos da Tijuca, Beija-Flor de Nilópolis e também presentes em Mangueira e Tuiuti.

Se a escassez de dinheiro e a falta dos ensaios técnicos no Sambódromo tiveram algum colateral positivo, foi devolver as escolas de samba a seus berços. Nunca uma temporada tão fértil de desfiles nas bordas das quadras ou nas cidades de origem, resgatando nas agremiações e nas comunidades a chama primordial do sentido da festa: coletividade, celebração, fraternidade, afeto.

Elza Deusa Soares é o enredo que reúne as três dimensões: é digna de homenagem, carrega divindade, tem pertencimento. Tudo isso embalado num dos dois melhores sambas do ano, que tem entre os compositores a também cantora Sandra de Sá — o outro é “Tata Londirá”, da Grande Rio. Por essas e outras, a Mocidade entrará campeã na Avenida — se sairá vencedora, cabe ao jurados. Mas Elza Soares já ganhou. Motumbá, Deusa.

+ sobre o tema

Fuvest divulga datas do vestibular 2025

A Fuvest divulgou nesta segunda-feira (18) o calendário de...

Arte para manter viva a memória do colonialismo alemão

Espectadores se concentram em torno das obras de Cheryl...

Lideranças brancas têm responsabilidade na busca pela equidade racial

O Censo 2022 revelou um dado de extrema relevância histórica e...

para lembrar

Serena Williams protagoniza vídeo da Nike sobre empoderamento feminino

Vencedora de 23 Grand Slams, a tenista Serena Williams...

Precisamos reconhecer nossa palmitagem

Muito se tem discutido sobre a solidão da mulher...

Mulher negra sempre será subjugada, diz advogada Valéria dos Santos

Alvo de um episódio que causou revolta pelo racismo...

Um dia histórico para o Movimento das Mulheres

Ontem foi um dia histórico para o Movimento de...
spot_imgspot_img

Promessa de vida

O Relatório do Desenvolvimento Humano, divulgado nesta semana pelo Pnud, agência da ONU, ratificou a tragédia que o Brasil já conhecia. Foi a educação que nos...

O homem branco brasileiro de condomínio e o ato simbólico de “descer”

No documentário Um Lugar ao sol (Daniel Mascaro, 2009), sobre moradores de coberturas, temos um clássico exemplo de como a arquitetura brasileira revela a...

Comida mofada e banana de presente: diretora de escola denuncia caso de racismo após colegas pedirem saída dela sem justificativa em MG

Gladys Roberta Silva Evangelista alega ter sido vítima de racismo na escola municipal onde atua como diretora, em Uberaba. Segundo a servidora, ela está...
-+=