Douglas Lima vivia um sonho. Depois de 12 meses sem oportunidades no futebol, quando se virou como pedreiro e entregador de piso, o jogador, aos 23 anos, era destaque na surpreendente campanha do Madureira no Campeonato Estadual. Na semifinal, contra o Fluminense, na tarde de 25 de fevereiro, um carrinho imprudente no meio-campo atingiu em cheio Gustavo Scarpa, craque do Tricolor, que sofreu uma grave lesão.
Por Bruno Alfano, Luã Marinatto, Pedro Zuazo e Rafael Soares Do Extra
Um acidente de trabalho que poderia ter se encerrado no pedido de desculpas entre os atletas, devidamente aceito nos dias seguintes, mas que valeu ao jovem de Mesquita, na Baixada Fluminense, uma marca mais profunda do que qualquer fratura: a do racismo. Na internet, revoltados com o lance, torcedores chamaram Douglas de “crioulo safado” e “comedor de banana”.
A denúncia sobre os ataques feita pelo rapaz à Polícia Civil é apenas um dos 201 casos envolvendo crimes de intolerância registrados no estado entre janeiro e junho deste ano, numa média superior a uma ocorrência diária. A partir de hoje, na série de reportagens “Um Rio de ódio”, o EXTRA destrincha as estatísticas do preconceito, em um levantamento inédito, e conta a história de parte dessas vítimas.
— Precisei voltar ao Brasil para sofrer, pela primeira vez, uma discriminação como essa — diz Douglas, que, antes do período sem clube, chegou a passar três meses atuando na Espanha, onde relatos de racismo são frequentes.
Foto: Bruno Alfano, Luã Marinatto, Pedro Zuazo e Rafael Soares
Os números analisados pelo EXTRA consideram todos os casos em que, ao realizar o registro de ocorrência, o policial civil responsável indicou, na aba “motivo presumido”, as opções racismo, homofobia ou intolerância religiosa — os outros dois temas serão abordados na continuidade da série. Desse modo, qualquer tipo de crime pode surgir na busca, desde que esteja inserido nesses contextos. As situações mais frequentes, porém, envolvem injúrias, ameaças e lesões corporais.
Não é possível computar na pesquisa, por exemplo, casos nos quais o agente que fez o registro não sinalizou a possível motivação. Além disso, tratam-se de crimes com alto índice de subnotificação, quando a vítima não procura a Polícia Civil. Este ano, o fenômeno foi potencializado ainda pela greve que atingiu a corporação de meados de janeiro até o início de abril — ou seja, o total de ocorrências envolvendo intolerância tende a ser consideravelmente maior. O próprio Douglas tentou registrar o caso, inicialmente, na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), mas não obteve sucesso. Apenas na segunda tentativa, na 17ª DP (São Cristóvão), foi possível dar início às investigações.
— Minha mãe, minha tia, todo mundo pediu para registrar. Não tinha como deixar pra lá — conta o jogador, ainda sob contrato com o Madureira.
Foto: Bruno Alfano, Luã Marinatto, Pedro Zuazo e Rafael Soares
Pelas ironias da vida, Douglas fez a maior parte de sua formação nas categorias de base justamente do Fluminense. Entre os 9 e os 15 anos, ele saía todos os dias de Mesquita antes mesmo de o sol raiar e seguia para Xerém, onde estudava e arriscava os primeiros dribles e chutes como aspirante a jogador profissional, no Centro de Treinamento do clube. A forte ligação com o Tricolor, contudo, não traz à tona mágoas pela atitude de parte da torcida:
— Sei que foi coisa de uma minoria. Teve gente, inclusive, que recriminou quem fez, mesmo também estando chateados com a situação.
Do Fluminense, começou a peregrinação por vários times. Tão comum entre os jogadores que buscam projeção, as mudanças em sequência levaram o jovem a quatro estados e até a outro país.
— Essas ofensas não vão me atrapalhar em nada. É mais um obstáculo que aparece e pelo qual vou passar por cima — garante Douglas.
Foto: Bruno Alfano, Luã Marinatto, Pedro Zuazo e Rafael Soares
‘Cor, querendo ou não, ainda faz muita diferença no brasil’
Entrevista com Douglas Lima, jogador do Madureira, de 23 anos
Como você lembra daquele lance?
Foi no calor do jogo, era uma bola praticamente perdida. Entrei um pouco forte e também escorreguei. Aí, o pé do Scarpa ficou debaixo de mim e torceu.
Como foi o pedido de desculpas?
Na hora não deu pra falar muito, ele estava estressado, mas conversamos pela internet e ficou tranquilo, ele me desculpou. Falou que era lance do jogo. Mas a torcida não esqueceu, ainda me xingam por onde passo. Fiquei marcado.
Quando começaram as ofensas?
Foi só uns dois meses depois, quando saiu um laudo da lesão, e o Scarpa seguia afastado. Um amigo mandou o print no Twitter, mostrando o que estavam falando. Me chamaram de crioulo e comedor de banana, entre outras coisas piores.
Como você se sentiu?
Fiquei chateado demais. Uma coisa de futebol, que é para ficar no campo, vir assim pra vida pessoal. Ainda fico mal ao lembrar. Até porque não é só comigo. Foi com o Aranha, em Porto Alegre, e com vários jogadores na Europa.
O que você diria para essas pessoas?
Nunca pensei nesse encontro, mas eu desculparia. Acho que não sabem o que dizem. As pessoas são iguais, não importa a raça ou a crença. Mas cor, querendo ou não, ainda faz muita diferença no Brasil. Ser negro aqui é complicado
‘Cor, querendo ou não, ainda faz muita diferença no brasil’
Entrevista com Douglas Lima, jogador do Madureira, de 23 anos
Como você lembra daquele lance?
Foi no calor do jogo, era uma bola praticamente perdida. Entrei um pouco forte e também escorreguei. Aí, o pé do Scarpa ficou debaixo de mim e torceu.
Como foi o pedido de desculpas?
Na hora não deu pra falar muito, ele estava estressado, mas conversamos pela internet e ficou tranquilo, ele me desculpou. Falou que era lance do jogo. Mas a torcida não esqueceu, ainda me xingam por onde passo. Fiquei marcado.
Quando começaram as ofensas?
Foi só uns dois meses depois, quando saiu um laudo da lesão, e o Scarpa seguia afastado. Um amigo mandou o print no Twitter, mostrando o que estavam falando. Me chamaram de crioulo e comedor de banana, entre outras coisas piores.
Como você se sentiu?
Fiquei chateado demais. Uma coisa de futebol, que é para ficar no campo, vir assim pra vida pessoal. Ainda fico mal ao lembrar. Até porque não é só comigo. Foi com o Aranha, em Porto Alegre, e com vários jogadores na Europa.
O que você diria para essas pessoas?
Nunca pensei nesse encontro, mas eu desculparia. Acho que não sabem o que dizem. As pessoas são iguais, não importa a raça ou a crença. Mas cor, querendo ou não, ainda faz muita diferença no Brasil. Ser negro aqui é complicado.
Comércio lidera número de registros
Cláudia Ferreira dos Santos, de 46 anos, ainda se lembra das palavras de seu agressor. “Senhora, eu vi você pegar um pacote de macarrão. Abra sua bolsa”. O tom, ela recorda, era de quem se sente superior. Na saída do supermercado, a moradora de Nova Iguaçu, na Baixada, precisou mostrar que não tinha roubado nada para um funcionário branco, alto e de olhos azuis. O caso é emblemático: mulheres são as maiores vítimas, e os locais onde há mais injúrias raciais são os estabelecimentos comerciais, segundo os registros levantados pelo EXTRA.
— Se eu fosse branca, estivesse em altos panos, tenho plena certeza que não seria abordada. O fato de ser mulher também complica muito por parecer frágil. Ele era mais alto que eu — conta.
A professora de música se descobriu mais vulnerável do que imaginava. Ficou sem chão e suou frio. Só voltou uma vez ao local, entrou por outra porta e não ficou nem cinco minutos — as lembranças foram insuportáveis. Agora, por medo, fica atenta durante as compras para não ser confundida novamente. A Justiça determinou uma indenização de apenas R$ 3 mil:
— Eu pensei que ia ser forte. Achava que viver isso era bobeira. Mas ficou uma marca.
‘Não quero minha filha com macaco’
Era para ser uma noite de festa. Em meados de janeiro, o motorista comemorava seu aniversário de 30 anos, em um bar na Zona Norte do Rio, região que concentra quase 30% dos casos de racismo do estado. Estavam sentados à mesa amigos e a então namorada do rapaz. O grupo conversava, quando uma mulher se aproximou aos berros: era a mãe da companheira. “Não quero minha filha namorando um macaco, preto de merda”, gritou ela, conforme o motorista relatou na 40ª DP (Honório Gurgel).
— Até a filha dela ficou do meu lado. Foi à delegacia comigo. Queria esquecer que isso aconteceu — conta ele.
Em quase 10% dos casos de crimes motivados por racismo, porém, os ataques não são apenas verbais: sete das 77 vítimas foram alvo de violência física. Numa das ocorrências, registrada em maio na 35ª DP (Campo Grande), a mãe de uma menina de 9 anos relata que foi agredida, dentro do condomínio onde mora, depois que foi tomar satisfação com uma vizinha que havia chamado sua filha de “macaca, carvão e preta”. Antes, ainda segundo a vítima, a criança havia sido “atacada com uma chinelada no rosto” pela mesma mulher.
Em outra ocasião, uma jovem foi atingida com um celular no rosto após sofrer ofensas racistas de uma colega. O crime se deu em um colégio particular de Magé.