Sob pressão, empresas encaram a diversidade e mudam estruturas para contratar mais negros, mulheres e LGBTs

Com a pressão crescente de consumidores, clientes, movimentos sociais e dos próprios empregados, grandes empresas começam a dar um passo além das peças de marketing e das boas intenções na direção da diversidade em seus quadros funcionais.

Causas contra o racismo, a desigualdade de gênero e a LGBTfobia começam a se refletir no ambiente corporativo de forma mais estruturada, com metodologias, investimentos e metas. E não é só para ficar bem na foto e reduzir riscos à reputação.

As companhias seguem evidências de que cabeças diferentes favorecem a inovação, ampliam mercados e aumentam lucros. Há mais oportunidades, mas ainda faltam negros, mulheres e pessoas LGBTQ+ no topo.

A frente racial ganhou impulso com os protestos antirracistas no mundo provocados pelo caso George Floyd nos EUA há dois meses. Além de um posicionamento antirracista, as empresas são cobradas pela coerência: não adianta fazer publicidade contra o racismo sem contratar negros ou investir em projetos para reduzir desigualdades raciais.

No Brasil, pretos e pardos ganham, em média, pouco menos de 60% que brancos, segundo o IBGE.

APOIO. Líder na área administrativa da petroleira Ocyan, no Rio, Vinícius Tinoco atribui parte de sua ascensão a um mentor. Agora, ajuda na criação de um programa de diversidade racial porque sabe a diferença que pode isso fazer para quem ainda é exceção: “Temos historicamente uma carga emocional muito grande por conta dos obstáculos, barreiras e paradigmas que precisamos quebrar.” (Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo)

Conhecida pela cultura corporativa baseada na chamada meritocracia, a Ambev abriu este mês um processo para recrutar 80 estagiários negros em todo o país. Será a segunda edição do programa Representa, que teve um piloto em 2019 com dez universitários pretos e pardos na sede, em São Paulo.

Joia do portfólio do bilionário Jorge Paulo Lemann, a cervejaria contabiliza 49% de empregados autodeclarados pretos e pardos, mas a maioria na base. Em postos de liderança são cerca de 30%, bem longe dos 56% na população contabilizados pelo IBGE.

Atalho profissional

Em 2017, um grupo de empregados negros foi formado na Ambev para discutir questões étnico-raciais, aumentando a demanda por diversidade, mas a empresa patinava.

O especialista em Gente e Gestão da Ambev, João Vitor Marinho, conta que até as seleções tinham poucos candidatos pretos ou pardos. Então a companhia percebeu que precisava investir na busca e retenção de talentos negros.

IGUALDADE. Para a vice-presidente da Concentrix no Brasil, Claudia Gimenez, não há dúvida de que a multinacional de tecnologia ganha por ter 56% de mulheres entre sete mil empregados. Entre os líderes, são 47%. “A ascensão das mulheres no mercado de trabalho é boa para os negócios, a economia do país e a sociedade. Estamos falando de distribuição de renda e redução das desigualdades.” (Foto: Imagem retirada do site O Globo)

Para compensar as assimetrias socioeconômicas e de qualificação entre negros e brancos comuns no Brasil, a Ambev oferece aos selecionados do Representa mentorias e treinamentos, como cursos de inglês e de finanças pessoais, assistência jurídica e acompanhamento psicológico.

— A gente já passou da fase em que havia necessidade de explicar por que diversidade é importante para o negócio. Há uma correlação alta entre diversidade, inovação, produtividade e ganhos financeiros. Quanto mais a gente consegue representar o que é a sociedade, melhores decisões de negócios conseguimos — diz Marinho. — Queremos desenvolver profissionais para que se tornem líderes no futuro.

Com a ajuda de uma consultoria, em 2015, a Ambev treinou líderes para tentar eliminar o viés inconsciente do racismo nas avaliações em uma empresa que estimula a competitividade com metas ambiciosas, bônus por desempenho e ascensões meteóricas.

AÇÃO. Integrante da equipe de marketing da Ambev, Indianara Dias de Oliveira está, há dois anos, à frente do grupo de diversidade racial da cervejaria. Foi uma das funcionárias negras que deram sugestões à empresa no processo de estruturação do programa Representa. “Enquanto uma mulher negra dentro do mundo corporativo pude ver e viver na prática o quão distante estamos do mundo ideal. É muito gratificante poder contribuir ativamente. Tem funcionado muito bem a gente levar a nossa vivência, mas também aprender mais sobre o cenário que está posto. Esse diálogo é muito bom para os dois lados”, diz. (Foto: Ambev / Divulgação)

Assessorias especializadas têm sido o atalho de quem não sabe por onde começar. Luana Génot, diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), conta que a demanda por consultorias desse tipo aumentou 500% desde maio. Antes do caso Floyd, ela organizava cinco treinamentos por mês. Agora, são mais de 30.

Em sua metodologia, Luana classifica as empresas que a procuram em três níveis: as comprometidas com treinamentos para reduzir casos e denúncias de racismo; as engajadas, que fazem censo de diversidade e atuam para aumentar a contratação de negros; e as influenciadoras, que aplicam a questão racial até na escolha de fornecedores.

— As empresas no Brasil ainda estão no comprometimento. Algumas são engajadas, mas nenhuma influencia. Há muita palavra e hashtag e pouca prática. Nos EUA, bônus de executivos são atrelados a metas de diversidade — diz Luana, que também é colunista do GLOBO.

RESPEITO. Vitor Castro é consultor do escritório Veirano Advogados. Baseado em Londres, onde vive com seu marido, milita a distância por diversidade no meio jurídico no Brasil, que considera machista e conservador, e integra um grupo de mentores para advogados que ainda formam minorias. “Para mulheres, avançou um pouco mais. Para negros e profissionais LGTBQ+, a luta está só começando.” (Foto: Imagem retirada do site O Globo)

Na Johnson & Johnson, o grupo de afinidade Soul Afro proporciona a trabalhadores negros uma espécie de letramento racial facilitado pela historiadora e educadora Suzane Jardim, apelidado internamente de “afrobetização”. Em sessões mensais que envolvem também os brancos, estereótipos são discutidos para retirar preconceitos da cultura interna.

Agora, a multinacional vai iniciar um plano de formação de lideranças como Silvio Silva, diretor comercial da empresa que coordena o grupo desde que só havia ele e mais um funcionário negro. Hoje, são 160 integrantes.

— É um processo. Já percebemos a evolução com uma mudança de postura e plano traçado — diz o executivo.

Numa iniciativa semelhante, o banco Citi criou a frente Blacks at Citi, que aposta em capacitação para formar lideranças negras, como um fórum realizado em parceria com a Harvard Business School em 2019. Em paralelo, treinamentos mandatórios para gestores buscam combater o viés inconsciente do racismo que pode atrapalhar a avaliação de funcionários.

RECONHECIMENTO. O analista de sistemas Carlos Eduardo Santos se acostumou a ser um dos poucos negros em ambientes corporativos desde que saiu da faculdade. Em 2009, começou a trabalhar como terceirizado no Citi e, dois anos depois, foi contratado como analista. Hoje, lidera um grupo de inovação de 15 pessoas em cinco países e atribui parte do sucesso ao apoio que teve de um mentor e do grupo de profissionais negros formado no banco. “Eu me vi muitas vezes como a exceção ao longo da vida, mas entendia como normal. Via o meu desafio, não era engajado. Quando passei a interagir com os outros percebi que algo está errado e precisa mudar. Precisamos ajudar os colegas que estão por vir.” (Foto: paulo vitale / Divulgação/Citi)

Um sinal do maior interesse por profissionais negros nas empresas foi a demanda atendida pela plataforma de recrutamento Vagas.com: uma ferramenta de autodeclaração racial voluntária dos candidatos.

Desde abril, mais de 200 mil preencheram, 52,4% negros, e 12 empresas já usam o filtro. Outras nove estão em processo de adesão.

Renan Batistela, do Comitê de Diversidade e Inclusão da Vagas.com, explica que, embora haja risco de uso discriminatório, só pode acessar o filtro a empresa que assina documento de comprometimento e comprova o aumento de entrevistas e contratações de profissionais negros.

— Percebemos que as oportunidades ainda são, na maioria, para cargos operacionais. Infelizmente, não se vê muita seleção de alto escalão com filtro de diversidade — observa.

Metas de gênero

A redução de desigualdades de gênero é uma pauta mais avançada nas empresas, mas a ocupação de postos de liderança ainda é limitada para mulheres. Para acelerar resultados, companhias passaram a estabelecer metas.

ATRAÇÃO. Marta Pinheiro, diretora de ESG (sigla em inglês para melhores práticas ambientais, sociais e de governança) da XP Investimentos, diz que a política de iguadade de gênero é uma necessidade para uma empresa que precisa se conectar com um público que também é diverso. A empresa precisa do talento feminino. Por isso estabeleceu metas e ações, como a formação de lideranças femininas, para alcançá-las: “Uma empresa mais diversa tem um desempenho melhor.” (Foto: VIVIAN KOBLNSKY / Divulgação/XP)

O compromisso da corretora XP é ter 50% de mulheres até 2025. Atualmente, elas são 22% dos 2.600 funcionários. Para cumprir o objetivo, a empresa criou um grupo feminino, o MLHR3, para dar ideias sobre como treinar lideranças femininas e fiscalizar a evolução de indicadores de promoção e remuneração delas na comparação com os homens.

Marta Pinheiro, diretora de ESG (sigla em inglês para melhores práticas ambientais, sociais e de governança) da XP, diz que a ideia é atrair talentos:

— Empresa diversa tem desempenho melhor. Queremos refletir a diversidade dos clientes e entregar melhores soluções. Sem diversidade, não só de gênero, mas também em relação à orientação sexual e à questão racial, não é possível.

Levantamento global da consultoria Mercer mostra que menos da metade das organizações tem uma estratégia para melhorar a equidade de gênero.

OLHAR. Diretora de Operações da Coca-Cola Brasil, Debora Mattos atua em comitês de gênero e raça da empresa, que está revisando processos de seleção. Em 2016, fez uma palestra para uma turma de jovens aprendizes, a maioria negros: “Não tinha clareza do meu papel como mulher negra em cargo de liderança. Vi nos olhos deles o que eu representava. Hoje, sei que meu papel é abrir caminhos.” (Foto: Rodrigo Felha / Divulgação)

De acordo com o relatório “When Women Thrive”, a maioria (81%) das organizações em todo o mundo diz que diversidade e a inclusão são importantes, mas menos da metade (42%) tem uma estratégia documentada, com metas a serem alcançadas na igualdade de gênereo.

Embora a representação das mulheres em cargos de liderança sênior esteja aumentando, ela diminui à medida que os níveis de carreira avançam.A pesquisa da Mercer estima que as mulheres são apenas 29% e 23% dos cargos de nível sênior e executivo das empresas, respectivamente.

Na Natura e na Coca-Cola, as mulheres já são maioria: 60% e 54% das respectivas equipes. Mas, nas diretorias, esses índices caem para 43% e 48%. Então elas estabeleceram como meta consolidar a equidade nos cargos de liderança até o fim deste ano.

A gerente de Diversidade e Inclusão da Natura, Milena Buosi, diz que a empresa também busca remuneração igual para homens e mulheres no mesmo cargo até 2023.

A gigante de cosméticos chamou a atenção na semana passada ao convidar o ator Thammy Miranda para a campanha do Dia dos Pais. Provocou críticas, mas também muitas reações positivas, inclusive dos investidores: as ações subiram 10% em dois dias.

A empresa diz ter escolhido um homem trans para “celebrar todas as maneiras de ser homem, livre de estereótipos e preconceitos”.

ORGULHO. Em dez anos na 3M, Marcos Sgarbi foi de estagiário a líder de experiência digital na América Latina sem ocultar a sexualidade. Iniciativas como um grupo de afinidade LGBTQ+ o deixaram livre para exercer todo o seu potencial: “Quando estamos num ambiente respeitoso e saudável, colaboramos mais, inovamos. As cores do meu crachá mostram que estou confortável com o que eu sou.” (Foto: Matheus Meireles / Divulgação)

Internamente, a empresa diz buscar o mesmo, com a garantia de uso do nome social de empregados trans e ações de conscientização a partir do grupo de afinidade Natura Em Cores. Esse tipo de iniciativa cresce em outras empresas, mas o mercado de trabalho ainda é difícil para lésbicas, gays e principalmente transexuais.

Pesquisa do Center for Talent Innovation mostra que 61% dos LGBTQ+ de multinacionais no Brasil escondem suas personalidades por medo de perderem o emprego.

Diversidade faz diferença

— Quando a empresa diz que aceita diversidade, precisa refletir isso. É uma cobrança do público pela transparência, mas também uma ferramenta da empresa para se conectar com o seu público — diz o professor de marketing da ESPM, Rafael Nascimento.

Para o especialista, a urgência da diversidade foi ressaltada pela internet e as redes sociais:

— O consumidor hoje é plural e essa diversidade é essencial na discussão estratégica para não errar.

A consultoria empresarial McKinsey divulgou em julho um estudo realizado com empresas na América Latina que concluiu que ações de diversidade estão relacionadas a melhor performance financeira, entre outros benefícios.

— Isso porque nos locais inclusivos há maior engajamento e liberdade da equipe, o que os leva a inovarem mais, além de reter talentos. Tudo isso faz com que se produza mais e melhore, o reflete no resultado — analisa Paula Castilho, da McKinsey.

COMPROMISSO. Claudio Ribeiro de Jesus tem sob sua gestão 650 pessoas na área de vendas B2B da Vivo. Criado na periferia de SP, colabora com iniciativas da empresa para aumentar a diversidade: “A companhia ter essa visão é fundamental, mas chefes precisam pedir candidatos de origens distintas nas seleções. E o profissional tem que se esforçar. É importante dividir a responsabilidade.” (Foto: Imagem retirada do site O Globo)

O coordenador do Programa Avançado de Diversidade e Inclusão da escola da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e consultor do tema, Ricardo Sales, destaca que a diversidade ajuda a empresa a enxergar nichos rentáveis e esquecidos.

Para ele, que desenvolve um doutorado na USP sobre o que motiva as empresas a investirem em diversidade, a mudança de fato só vem a partir de mudanças na metodologia de contratação:

— A busca pela diversidade tem que ser intencional. A estrutura do RH é viciada muitas vezes, procura profissionais sempre nos mesmos lugares. As universidades têm coletivos fortes que reúnem estudantes com perfil diverso. É importante revisar o processo para mapear onde as pessoas negras, mulheres e profissionais LGTBI ficaram para trás. Se for na entrevista, o problema pode estar nos gestores, por exemplo.

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