Sobre dentes de sorrir e morder ou por que exibimos nosso orgulho crespo

“Você não pode sorrir”, sentenciou. Foi a primeira vez que me disseram que eu não podia sorrir. Era uma sala pequena, com uma cabine amadora, alguns figurinos e um fotógrafo ligeiro. Ligeiro porque, na sala de espera, outras garotas aguardavam sua vez de sorrir.

Por Neomisia Silvestre Do Brasil Post

Eu tinha 11 anos. Era meu primeiro book fotográfico, desses semiprofissionais que nos anos noventa era febre entre as garotas. Todas tinham um. E eu pelejei muito com meus pais porque também queria o meu. Insisti, por mais que aquilo parecesse superficial e acarretasse um custo adicional nas despesas do mês. Pra mim, era o melhor presente de aniversário. Afinal, também queria sorrir pra foto, queria me exibir na escola, queria me ver bonita. O que eu não sabia é que NÃO podia sorrir. O fotógrafo não disse o motivo, mas deixou subentendido numa desculpa esfarrapada de “Ela usa aparelho, né, mãe!”.

Sim, eu usava aparelho e tinha os dentes tramelados; neologismo para tramela. Meu pai, nascido piauiense e crescido trabalhador da roça, tinha uma memória afetiva da tal tramela e explicava pra gente [eu e meu irmão mais velho] que aquilo era um instrumento utilizado para prender os bezerros e desmamá-los quando se pretendia engordar as vacas. Cruel. E, por alguns anos, toda noite eu tinha que dormir com um tipo de aparelho preso aos dentes, mas fora da boca. Era a minha tramela. Eu não podia sorrir.

Semanas depois, chegou o book lindão com suas 30 fotografias. “Lindão” pra minha mãe, que danou a distribuir fotos pra família toda. Um dos meus tios carrega uma delas até hoje na carteira. O mesmo tio que em almoços de domingo soltava a já conhecida piada do “Por que preto só tem dois dentes? / Um é pra abrir cerveja pra branco e o outro pra doer o dia todin”. Todos riam ingênuos, deles mesmos. E eu só pensava em não poder sorrir. Gostava de uma ou outra foto, de uma piada ou outra, mas nada ali me agradava. E, claro, não exibi meu book na escola.

Passados os anos e aquele “Você não pode sorrir” me acompanhando também nos afetos, nos crushs que eu não conseguia desenrolar com sucesso, no semblante macambúzio que eu tentava adestrar sorrindo sem dentes toda vez que me sentia diminuída. Até descobrir, sozinha, que no fim das contas eu precisava era de outra tática para me destacar dos demais, pra sorrir doutra maneira.

Tornei-me a melhor da classe, dos verbos, dos sujeitos. Me apeguei a dicionários. E sublinhava de azul as palavras que mais gostava. Copiava incansável nos cadernos de brochura seus significados. Alguns eu inventava, outros aprendia a ressignificar seus nomes. Como o meu próprio, Neomisia sem acento, sempre seguido de risos e chacota a cada pronúncia errada.

O melhor dos meus sorrisos só veio aos 23 e está pendurado, embalsamado numa moldura na sala de casa. É um retrato tirado no dia da minha colação de grau: a primeira com diploma na família. Ali, eu sorria todos os meus 32 dentes corrigidos e brancos. Estou de chapinha nos cabelos soltos. Estou quase branca. Afinal, até ali eu ia me enganando bem: tinha estudo, tinha sorriso bonito, tinha cabelo liso, tinha autoestima. Tinha? Tinha que escolher se na minha primeira entrevista de emprego eu ia de cabelo natural, de cabelo preso, de cabelo solto, de cabelo com creme (muito creme!). Dorme de touca que é pra demorar a voltar ao normal. Dorme cedo que é pra passar a roupa de manhã e chegar bonitinha na entrevista.

Só me sobrava ser minimamente bonitinha. E chegar perto da vaga desejada. E chegar primeiro. E chegar melhor. E chegar… E chegar. “Você vai assim?”. Assim como? Assim. Eu quero trabalhar com meu cabelo assim. “Aqui não pode”.

“Eu vou assim” demora a acontecer na vida de uma mulher negra. “Eu vou assim” exige segurança, amor próprio, pede atitude, requer tudo que nos ensinaram a não ter, a não ser. “Coloca um lenço ou prende ele assim pra trás”. “Deixa preso que ninguém nota”. “Mas afina o nariz na maquiagem”. “Batom vermelho não”. “Não sei como você tem coragem de andar com um cabelo assim”. Assim como? É assim que eu sou, que ele é e juntos vamos negociando nossa labuta diária: a de desviar dos olhares, a de ensurdecer palavrões na rua, as tais justificativas para a negação da própria identidade. Aprendemos a nos odiar.

“Eu vou assim” demora a acontecer, mas quando acontece é um caminho sem volta. E acontecer na vida é um exercício diário. É não aceitar os moldes, os padrões eurocêntricos, o quartinho dos fundos, o último lugar na fila. É não ser a escolha que sobra ou a falta de opção. Diário porque exige que você despreze tudo que não soma, tudo que quer te diminuir enquanto indivíduo que se é. Diário porque a estrutura do racismo é dura, concreta a tal ponto que precisamos criar frestas, tentar respirar, aparecer, existir e florescer de algum jeito, como plantas que nascem em lugares inadequados e hostis.Mas nascem!

É hostil ser negro no Brasil. É impróprio, inimigo, contrário, agressivo, provocador. É ser preto demais pra esse lugar todo branco, limpinho. Afinal, é preciso cuidado com o manuseio de todo branco-cor, já que branco não se suja. O racismo nos coloca no lugar da sujeira o tempo todo. E esse lugar nós recusamos, não queremos, não pertencemos. Não somos a mancha. Somos a cor desse lugar cinza que insistem nos aprisionar.

Há lugares de abrigo. Lugares para recarregar forças. Lugares de bênçãos e proteção. E, com o tempo, cada um vai encontrando seu lugar e uma maneira única de se relacionar com ele. Eu encontro abrigo no meu semelhante, no que me representa. E, toda vez em que eu pensar em fraquejar, em desistir, em me esconder de mundo, eu vou buscar abrigo nesse tudo que há no breu, no negro, no preto. Porque, pra mim, preto é a junção de todas as cores, não a ausência delas.

E criar a Marcha do Orgulho Crespo, um movimento que pauta a valorização da estética negra como símbolo de resistência e resgate da identidade e da autoestima, é poder sugerir uma fresta mínima para sermos vistos, pra gente se olhar além do virtual, além da não representatividade na mídia, nas propagandas, nos cargos de poder. É um lugar onde se inspirar no outro é possível e renascer nesse duro cotidiano é necessário: onde flores não nascem, onde vidas negras não importam, onde qualquer característica do povo negro precisa ser dissipada, não aceita, ridicularizada, apagada, morta.

Penso e me felicito quando frestas são abertas. Porque são aberturas para o novo, possibilidades de ressignificação do que está posto como modelo a ser seguido, àquilo que sempre foi e ninguém nunca botou a mão para alterar, para abrir uma nova passagem de luz. Luz é conhecimento.

Certa vez um amigo me disse, com sabedoria: “As árvores crescem pra cima, Neo. Crescem contra a gravidade”. Oras, crescem porque vão em direção à luz. Crescem seus galhos em distintas direções como estratégia de sobrevivência. E a nós resta criar estratégias de como sobreviver todos os dias. Estamos a aprender como crescer em diversas direções e possibilidades, a como ocupar os espaços negados, a sorrir e a morder quando preciso. E a valorização da estética também passa por esse lugar, já que este lugar não diz respeito apenas ao Black Power colorido estiloso e tal, é também sobre o jovem negro periférico lido como suspeito pela sociedade e tido como alvo altamente periculoso pela polícia.

Fato é que nossos cabelos crescem pra cima e, aos poucos, a gente vai nutrindo e respeitando nossas raízes – literalmente. E essa, pra mim, é a ressignificação que me apego e fortaleço toda vez que uma mulher negra, um pai, uma criança, um adolescente negro passa por mim e agradece – ainda que com o olhar – a redescoberta de seu orgulho crespo e o desejo de novamente fazer as pazes consigo.

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