Refletir sobre a solidão e as complexidades afetivas de corpos negros é adentrar um universo de profundas intersecções entre identidade, racismo estrutural e afetividade. Este ensaio se propõe a explorar meu percurso pessoal e acadêmico neste contexto, lançando luz sobre as interações entre experiências pessoais e o contexto social mais amplo que molda nossas relações.
Desde que internalizei a cosmovisão de “tornar-se negro” como uma jornada de consciência e identidade no Brasil, tenho enfrentado um profundo processo de autoconhecimento e confronto com as realidades raciais que permeiam minha existência. Este processo tem sido especialmente doloroso ao revisitar minhas vivências afetivas, marcadas pela tentativa de conciliar uma busca por amor e identidade em um contexto estruturalmente racista.
Inicialmente, como muitos, eu adotei a ideia de que “o amor não tem cor”, até perceber, dolorosamente, a solidão e o isolamento que acompanham a construção de afetos em um mundo que muitas vezes nega nossa humanidade, onde se “o amor não tem cor, a solidão tem”.
A descoberta dessa dor se intensificou durante o recente término de um relacionamento que, de início, parecia promissor, mas rapidamente se tornou um microcosmo das tensões mais amplas que enfrentamos como corpos negros dentro de estruturas normativas e capitalistas, as quais permeiam nossas relações afetivas.
A dinâmica do relacionamento foi atravessada pela pressão para atender a padrões convencionais de sucesso pessoal e profissional, buscando alcançar uma plenitude na felicidade a dois. Eu me vi frequentemente enredado em sentimentos de inadequação e autocobrança, especialmente por não estar em conformidade com as expectativas sociais de estabilidade financeira e sucesso profissional, sobretudo aos 30 anos, buscando assim sermos o casal idealizado, como se visto nas revistas e padrões socialmente romantizados sobre o “ideal familiar”.
A falta de um emprego estável tornou-se um ponto de tensão constante, sobretudo na autocritica de como me colocava na relação, alimentado pelo espectro da meritocracia que pairava sobre o cotidiano da vida a dois. Já que, parecia soar uma inercia de conduta sobre eu não querer me responsabilizar das escolhas que fiz, não buscar outras formas de encarar o mundo real. Isso desaguava em nós como frustações se de fato era o parceiro ideal. A vida financeira inconstante me negava estar na plenitude da relação, o acesso econômico nesta sociedade é provedor de termos vivências que nos conduza a caminhos possíveis de estarmos bem ou confortáveis de uma plenitude da felicidade, logo as dificuldades nesta relação.
Em um sistema onde o sucesso é frequentemente medido pela capacidade de atender a esses padrões normativos, o relacionamento se viu constantemente desafiado por essas fissuras, algo que foi colocado à mesa todas as vezes que enfrentamos os problemas vivenciados. Principalmente sobre os nossos problemas suprimirem a relação.
O término abrupto do relacionamento deixou uma marca profunda, não apenas como um evento pessoal, mas como um reflexo das estruturas de poder que moldam nossas vidas afetivas. Fui confrontado com a necessidade de enfrentar minha própria vulnerabilidade emocional e a dependência emocional que, paradoxalmente, foi atribuída a mim. No entanto, dentro de mim, este conceito se aproxima do puro sumo do narcisismo, por querer forçadamente que o outro esteja ao meu lado a todo custo, de modo que a ausência desta pessoa seja crucial para minha sobrevivência, mas como pode ser isso, se me coloco neste lugar de corpo que nunca foi o escolhido para ser amado.
A forma que desejo e construo amor é ORÍ-entado por Orixá, do melhor do amor de Oxúm, para estar e partilhar com o outro, estejamos guiados pelo saber ancestral “Oxúm lava primeiros suas joias para depois banhar seus filhos”. Isso implica, que se a forma de viver o afeto numa relação de casal não estar atrelada no que é imposto enquanto modelo de amar, isso confronta essa lógica narcisista de que a plenitude é fazer o outro de posse e controle do seu corpo.
A terapia tornou-se um espaço crucial para desvendar essas complexidades, confrontando a narrativa de dependência emocional com a realidade de um corpo preterido que sabe dizer como é não ser desejado e, assim, se quer ser amado.
Em meio a essas reflexões, surge uma urgência em decolonizar nossas formas de afeto, reconhecendo que as métricas normativas e capitalistas impõem violências adicionais aos corpos dissidentes, condicionando e determinando as suas relações afetivas.
Ao adotar uma perspectiva afrocentrada do afeto, reconhece-se a importância de criar espaços de amor que honrem nossas múltiplas identidades e confronte às expectativas convencionais impostas. Isso é um convite para reconhecer e enfrentar as complexidades de nossas vidas afetivas de maneira real e, ainda assim, coibirmos da reprodução das violências emocionais. Destas que, na sutileza do dia a dia, impomos ao outro cobranças que são meramente ancoradas nas métricas normativas.
Portanto, esta reflexão não apenas explora minha vida pessoal, mas também visa traduzir para o leitor a experiência emocional e intelectual de habitar um corpo negro em um mundo que ainda precisa ser confrontado em suas múltiplas formas de opressão. É um chamado para uma maior compreensão sobre corpos como o meu, que se aventura a viver o afeto afrocentrado, nas suas múltiplas complexidades, mesmo sabendo que podemos perder o grande amor, ainda que romantizado, pois este é o mais difícil de ser vivido. Além disso, é uma reflexão sobre a importância de questionar quais corpos estamos amando, e se devemos continuar priorizando aqueles que trazem maior status social e que serão mais aceitos pela sociedade.
Marivaldo dos Santos Junior – Urbanista, Pesquisador em relações étnico-raciais. “Preto sulamericano forte com brigo de ouro na orelha” que se aventura no mundo das escritas.
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