13 de Maio de 1888, dia da libertação dos escravos. Eis que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea e, a partir daí, todos se tornaram livres, dizia a professora em alto e bom tom na antiga 4ª série da escola periférica frequentada por meninos e meninas negras.
Eu não sei. Eu não sei dizer o porquê, mas meu coração vivia angustiado com essa história da “branca salvadora”; de saber que minha liberdade e do meu povo estava nas mãos do outro, que dependia da benevolência do branco bonzinho, da “branca salvadora”, cansados, desaprumados em lidar com as demanda geradas pela escravização de pessoas negras por quase IV séculos.
Eu não sabia exatamente o porquê, mas essa história de libertação de escravos nunca soou bem aos meus ouvidos. Quando me olhavam na escola, nas aulas de História e Ciências Sociais, com olhos de coitadinha, como quem via uma descendente de escravas, uma confusão de sentimentos tomava conta de mim. Sentia uma tristeza profunda e o desejo de desfazer uma história nojenta. Hora era raiva, mas muita raiva mesmo e vontade de xingar a todos que insistiam em repetir essa história vil. Hora era vontade de não existir e sumir daquele lugar, assim como aconteceu e acontece com tantas crianças. Meninos e meninas negras que não suportaram tamanha hostilidade e opressão, logo sentiram que não era um lugar para eles e elas. Ecoava por todos os cantos, escolhas e movimentos: “a escola não é pra você; pessoas negras não são dignas de usufruir desse saber; alunos e alunas como você não vão muito longe”. Dentro da escola, o corte na carne negra sangrava a todo momento e o sangue negro alimentava a branquitude e um sistema que prepara e espera da gente a servidão, a subserviência.
Não vou falar das inúmeras vezes que fui afetada por práticas racistas na escola; que sou, infelizmente, inevitavelmente, também resultado de uma educação racista. De uma negligência racista. Mas quero falar e afetar os meus que passam cotidianamente por esse lugar, que convivem amargamente com pessoas e com esses ambientes, experimentando no próprio CORPO NEGRO os cortes dos racismos, das palavras pernósticas, das piadas ridículas e sem graça que nos inferiorizam e nos exclui a humanidade.
Eu voltava para casa agarrada na sacola contendo lápis, cartilha, caderno e tabuada como quem agarra um tesouro. O chiado do chinelo preso ao fio de arame lembrava-me, a todo tempo, que havia um incômodo. Eu media os passos até atravessar a pista (BR) inconformada, querendo enxergar para além desse avesso. Tentando ver um horizonte que escondiam de mim. “Ninguém” sentia, ninguém me dizia, ninguém queria, ninguém falava, ninguém queria saber. Os que queriam, tentavam ver e dizer, não eram vistos, não eram ouvidos, eram demasiadamente ignorados. Então, aprendi a odiar essa data com todas as forças que podia, com todo o ódio que ensinaram contra mim, que estava programado para mim.
À noite, ao responder o dever de casa, lembro-me de olhar firme a luz do candeeiro, rastreava o dedo na haste de fumaça e dizia comigo mesma: eu não acho graça, eu não quero é não vou comemorar essa data. Penso que mentalizar esse posicionamento afetivo, mesmo que em silêncio ao acompanhar a direção da fumaça, era uma forma de não atribuir, deixar a minha liberdade e existência nas mãos dessas pessoas, prontas para estrangular os nossos saberes, a nossa ancestralidade, a nossa identidade, os nossos corpos.
Sempre achei que se levantasse a voz contra o conhecimento da professora, poderia “meter os pés pelas mãos”. Não saberia resolver, não saberia dizer, ninguém poderia me escutar. A bronca chegaria em casa e, mais uma vez, eu só seria “a neguinha metida” e raivosa, tantas vezes chamada.
Eu sentia, eu via que o meu povo não estava livre pra viver, pra estudar, pra morar, pra comer, pra amar. Eu só não sabia dizer. Voltava para livro (cartilha) lido repetidamente, e estavam lá: os escravos, as amas de leite, mulheres curvadas e cansadas, com tachos enormes à cozinhar, à servir a casa grande. As correntes enferrujadas, as senzalas, as chibatas, o tronco. Ao mesmo tempo que tinha medo ao ponto de sentir calafrios, ficava a pensar sobre os corpos que passavam constantemente por esses lugares, nutrindo em mim, em silêncio, o de desejo de desafiá-los. Penso que esse desafeto, esse sintoma emergiu de alguma forma em mim, em meu corpo. Provavelmente, nas brigas nas escola, nas falas raivosas, na voracidade com que devorava cada leitura, sem dar chance para alguém dizer que eu não sabia. Não consegui, não devia ser diferente. Meu corpo, meus afetos “nunca” sustentaram, suportaram essa história. Quem sabe, talvez, se conhecesse Maria Felipa, Luiz Gama, André Rebouças, o Chico da Matilde – o dragão do mar; Luiza Mahim, uma liderança, mãe do nosso advogado Luiz Gama; Maria Firmina a nossa romancista. Dandara, a guerreira, a nossa soldada da libertação e etc… etc… Teria, quem sabe, uma inspiração, uma força maior, a coragem necessária. Mas além da tentativa de roubarem minha negritude, tiravam de mim a coragem e tentaram implantar o medo, a impotência. Os mecanismos de opressão e regulação do meu CORPO NEGRO, da minha inteligência, da minha força negra. É dessa força e coragem que SANKOFA: Letramento Racial JosySenaPsy brota feito raiz, tronco de baobá que abriga os meus, os nossos e diz que nenhum CORPO NEGRO deve ficar para trás; ser gestado pela dor, opressão e exclusão dos racismos.
Essa história nunca me convenceu!
Joseane sena (JosySenaPsy), mulher negra, mãe, professora atuante na área linguagens; psicóloga estudiosa e pesquisadora da saúde mental da população negra; autora do projeto Sankofa: LeramentoRacial JosySenaPsy visando o questionamento e desconstrução da afetividade racista. Podendo assim, atuar na direção de uma educação antirracista.
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