Stephanie Ribeiro: Aliou Cissé é o “negro único” da Copa do Mundo

Dentre todos os técnicos das seleções do mundial de futebol na Rússia, Aliou Cissé é o único negro. Entenda como isso é um espelho da sociedade atual

Por STEPHANIE RIBEIRO, da BLACKGIRLMAGIC

 

Aliou Cissé (Foto: Kevin C. Cox/Getty Images)

“Sou o único treinador negro neste torneio. É uma realidade dolorosa que me incomoda. Acredito que o futebol é universal e que a cor da pele tem pouca importância no jogo” essa é a frase que Aliou Cissé, técnico da seleção do Senegal, disse em coletiva de imprensa na Rússia. Dos 33 técnicos que acompanham sua seleção na Copa da Rússia de 2018, Cissé é o único negro. Ele acredita que é necessário que mais africanos assumam espaços como o de treinadores – e não apenas o de jogadores. Além de tudo isso, Cissé também chama a atenção por ser o técnico de seleção com salário menor – inclusive menor do que o de alguns técnicos de times do campeonato brasileiro.

Cissé vem de um histórico de competência, afinal, como jogador, Aliou já se destacava – inclusive sendo um dos grandes nomes da seleção do Senegal com melhor resultado numa Copa do Mundo (o Senegal foi o sétimo colocado em 2002, se tornando uma das três nações africanas que chegaram nas quartas de final de uma Copa). Para mim, simbolicamente, Cissé representa o negro único. Mas o que é o NEGRO ÚNICO?

O negro único é aquele que é a literalmente a ILHA cercado de brancos. Ele é único, ele é pinçado para ocupar determinados lugares. Muitas vezes é tido como representante de um todo e cobrado por abrir espaços por esse todo, mesmo muitas vezes não tendo poder para isso. Além disso, sendo o negro cercado por brancos, não significa que ele tem a mesma remuneração, visibilidade e respeito que esses brancos. Muitas vezes ele é explorado e/ou sofre violências psicológicas nesse seu lugar de “único”, pois ele sequer foi criado por ele, esse lugar foi criado pela ESTRUTURA. Ele pode ser alçado por algum mérito individual a esse lugar, mas que não deixa de ser um lugar de desconforto dentro do racismo, pois foi criado pelo próprio racismo.

A somatório: ter o salário menor se comparado aos demais, um histórico com bom desempenho e ser, literalmente, o único negro desse contexto faz de Cissé o meu exemplo para esse debate. Para mim, é muito constrangedor pensar que temos um ÚNICO negro em 32. Mais constrangedor que isso é esse ser o único técnico que resolveu trazer o tema para o debate numa coletiva de imprensa. O negro único, quando consciente, se responsabiliza e tenta atuar para mudar isso. Mais uma vez, o silêncio dos demais mostra que numa estrutura racista a manutenção do racismo se dá na ausência de LUTA dos que se sentem confortáveis diante disso. Na vida cotidiana, quando você está numa sala de aula ou de trabalho e você é único ali, provavelmente pensa sobre isso, mas os que são a maioria não – e podem ainda considerar que anormal é sua presença, e não a ausência de igualdade racial.

Portanto, o negro único é aquele que é alçado a um espaço de destaque e visibilidade, o que não significa que nesse local ele passa a ter poder estrutural ou uma remuneração que condiga com seu trabalho. Mas muitas vezes ele se transforma numa representatividade dada a estrutura de marginalização, invisibilidade e subordinação que estamos inseridos. Além disso, aquela máxima de que você tem que ser duas, três, quatro vezes melhor, também é cobrada do negro único. A estrutura funciona assim: você precisa ser um negro brilhante para ser lembrado e ocupar o espaço de algum branco que não precisa ser tão brilhante assim.

Basicamente, existe uma cobrança enorme em cima da figura do negro único, já que ela é vista como responsável por tencionar as estruturas e abrir espaços para outros. Muitas vezes, essa pressão ignora que mesmo dentro dessa estrutura, sua ascensão individual não corresponde à possibilidade de poder estrutural de fato. Contudo, mesmo que esse negro único consiga debater e tentar romper esse seu lugar de único, a partir do momento que algo dê errado na sua trajetória, sua cor será o primeiro fator usado para responsabilizar o seu “deslize”. Ele não tem direito a falha, já que se subentende que todos os negros não são capazes – ele carrega, portanto, um peso COLETIVO mesmo, se tratando de um INDIVÍDUO. Vale destacar que a grande maioria de negros únicos sequer se coloca nesse lugar. O processo de inclusão de negros nas universidade é um exemplo disso: muitos de nós sequer cogitamos que seríamos únicos em salas de aulas repletas de pessoas alheias ao debate racial, ainda mais num país em que mais de 50% da população é negra.

Já li pessoas dizendo que Cissé está abrindo espaço para outros. Contudo, deixamos de entender que ser essa figura pode ser extremamente doloroso, cansativo e solitário. Ser o negro único significa ser a linha de frente, e estar nesse lugar é se tornar facilmente o alvo para críticas, violência e questionamentos. Não existe possibilidade de falha e de humanização quando sua existência por si só é desnaturalizada pelo fato de ser individual, num contexto em que não só existem muitos negros no mundo, como muitos negros com pensamentos diferentes, com estéticas diferentes, com pontos de vistas divergentes, com qualidades diferentes e com méritos diferentes que são totalmente anulados e desconsiderados diariamente. Quando um negro é colocado para representar o TODO – pois não se dá chances para negros de igualdade -, o racismo está mais uma vez unificando nossa existência e desconsiderando nossa pluralidade.

Outra coisa que é dolorosa na narrativa do negro único, é que outros negros vão entender que é necessário que ele deixe de existir para que eles possam ter uma chance. Já li uma série de discussões desse tipo: se fulano não existisse eu teria mais espaço. Se ignora que, muitas vezes, o espaço ocupado pelo tido negro único não é o único existente. Parece simples, mas não é. Penso muito sobre como a ideia do negro único foi embutida na nossa cabeça. Veja: se existisse um outro técnico negro na Copa, provavelmente muitas mídias estariam fazendo comparações. É assim que o racismo funciona dentro do contexto racista: tratando negros como coletivo e criando competições entre eles. O racismo está sempre se sofisticando na sua desumanização, e na criação de disputas entre nós para espaços que existem de forma abundante para brancos.

Estou cansada de ser comparada com outras feministas negras. Fico pensando em como as pessoas não conseguem me ver para além do negra. Não conseguem me ver como pessoa, que muitas vezes pode ter o mesmo interesse e competir diretamente, sendo até melhor, que um homem branco. Sempre me vejo sendo colocada num lugar de RIVAL de outra mulher negra até mesmo por pessoas negras ou outras mulheres. As pessoas preferem ver negros disputando entre si, se odiando entre si e acreditando que é um ou outro. As pessoas se comportam dessa forma, fortalecendo a inclusão individual, e não coletiva, quando se trata de negros. Por isso, essas comparações desonestas e assimétricas são absurdas. Viver num contexto em que negros ainda ocupam espaços solitários é mais absurdo ainda.

Fortalece-se muito a ideia de que sempre seremos uma ilha cercado de brancos – e que essa é a única possibilidade. Entendo que se tratando do comando de uma seleção, ainda não enxergam negros como estratégicos para ocupar o espaço de um técnico, e que precisamos tencionar mais nesse sentido. Mas o negro único não está só na figura de Cissé: temos vários negros únicos dando aula em universidades, ocupando cargos em empresas e tendo espaços na mídia, sempre um para cada espaço… Sempre um que tem que ser responsabilizado em carregar nas costas muitas vezes o debate racial… Sempre um e pronto. Quando vamos, coletivamente negros e não negros, questionar e responsabilizar as estruturas para desconstruir a figura do negro cercado na ilha branca?

Nossa saúde física e psicológica pede urgência. Ser o negro único desgasta, cansa e enfraquece. Olhar para os lados e não ver os seus é devastador. É sentir que você tenta, tenta, tenta, mas de alguma forma falha.

 

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