A fartura atual, nos Estados Unidos, de produções audiovisuais com viés étnico-racial dá o que pensar
Por Flávia Oliveira Do O Globo
É particularmente farta, se não em quantidade, em visibilidade a safra 2016-17 de produções audiovisuais com viés étnico-racial nos Estados Unidos. Por meus olhos já passaram “A 13ª Emenda”, documentário de Ava DuVernay indicado ao Oscar; “Estrelas além do tempo”, longa na disputa por três estatuetas; e “American Crime Story: the people v. O.J. Simpson”, série de dez episódios disponível na Netflix desde o início do mês. Todas as obras estimulam reflexões e debates sobre passado e presente do país que o democrata Barack Obama entregou ao republicano Donald Trump. Mas não só nos EUA. Os brasileiros, se quiserem, têm muito em que pensar.
Diretora de “Selma: uma luta pela igualdade” (2014), ficção histórica sobre a marcha por direitos políticos dos negros no racista Alabama em 1965, Ava DuVernay inventaria no novo filme o arcabouço jurídico-policial que levou os EUA a terem mais negros encarcerados no século XXI do que escravizados em meados do XIX. A obra parte do texto da 13ª Emenda da Constituição, que proíbe escravidão e trabalho forçado, exceto como punição por crime; passa pela construção simbólica do temor aos homens negros; e analisa os efeitos da política de guerra às drogas e de privatização de presídios na explosão da população carcerária.
Qualquer semelhança com o Brasil de Manaus (AM), Monte Cristo (RR) e Alcaçuz (RN) não será mera coincidência. Aqui, a promulgação da Lei de Drogas (11.343/2006) — que endureceu penas para traficantes e relegou à subjetividade a diferença entre usuário e criminoso — está entre as causas do superencarceramento. Em uma década, o número de presos por tráfico quintuplicou. Eles são quase sempre jovens, negros, de baixa escolaridade, primários, presos sem julgamento e agrupados por facções com as quais não necessariamente têm ligação.
“Hidden figures” (“Figuras escondidas”, em tradução livre e mais precisa que o título “Estrelas além do tempo”) conta a história de Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), três cientistas negras essenciais ao programa espacial da Nasa, nos EUA ainda sob leis de segregação. O desconhecimento sobre o trio, por décadas, diz muito sobre a invisibilidade imposta aos negros em sociedades racistas. Tudo a ver com o tanto que a História oficial do Brasil sonega as contribuições de africanos e indígenas na língua, nas tradições religiosas, na cultura e na economia. Representatividade e verdade histórica importam.
“The people v. O.J. Simpson” viaja pelo julgamento do século, como ficou conhecida a saga judicial de um ano que inocentou Orenthal James Simpson, ídolo do futebol americano, do assassinato brutal da ex-mulher Nicole Brown e do amigo Ronald Goldman, em 1994. A série ficcional tem Cuba Gooding Jr. no papel do ex-atleta (condenado posteriormente em ação cível e hoje preso por roubo em Nevada). Nela, tudo está para ser debatido: racismo e machismo; violência doméstica, brutalidade policial e desigualdade no acesso à Justiça; espetacularização da notícia e manipulação da verdade. O.J. era o único suspeito do duplo homicídio. Acabou inocentado por um júri sensibilizado pela retórica da defesa, que se escorou no preconceito racial da polícia de Los Angeles para ofuscar provas materiais. Por identificação, a população negra abraçou o ídolo afrodescendente. No fim do julgamento, o então presidente, Bill Clinton, se pronunciou sobre a fissura nas relações raciais no país. Duas décadas depois, os EUA não superaram a mazela. O movimento “Black lives matter” está aí como prova.
A agenda de gênero também é forte na série, seja pelo prisma da violência doméstica, seja pelo da discriminação no mundo do trabalho. O.J. tinha um histórico de agressões verbais e físicas à ex, mas isso não foi relevante para o júri. É a velha tolerância social à violência contra a mulher, igualmente conhecida no Brasil. A promotora Marcia Clark (Sarah Paulson) teve aparência, vida e intimidade expostas e escrutinadas pela imprensa. Disputava com o ex-marido a guarda dos filhos; pela crise familiar foi atacada pelos defensores. São episódios que ainda hoje alcançam mulheres em ascensão profissional.
Por fim, o caso O.J. escancarou a simbiose entre jornalismo e entretenimento. A grade de programação cedeu lugar às transmissões ao vivo de perseguição policial e julgamento. Crime e processo foram apresentados em enredo ficcional. Réu, vítimas, promotores e advogados foram avaliados em pesquisas de opinião. Livre, O.J. cobrou pela cobertura fotográfica da festa de volta para casa. Neste século, a ex-mulher (Kris), as filhas (Kim, Khloé, Kourtney) e o filho (Rob) do advogado Robert Kardashian (David Schwimmer, de “Friends”), morto em 2003, fizeram da vida um reality show.
Motivo para pensar não falta. Nem lá nem cá.