Terras indígenas e de preto no Vale do Café e o mito do “bom lavrador”

FONTEPor Felipe de Melo Alvarenga, enviado para o Portal Geledés
Jornal Echo Valenciano, Valença, 5/12/1875. Fonte: Centro de Documentação Histórica Prof. Rogério da Silva Tjader/Centro de Ensino Superior de Valença (CDH/CESVA).

Em 1875, foi publicado no jornal Echo Valenciano algumas características do que seria um “bom lavrador”. O periódico publicado no município de Valença era mais um dos veículos utilizados pela classe senhorial para propagandear a defesa da lavoura e intervir no espaço público, tendo em vista a legitimação dos fazendeiros de café e de seus interesses mais imediatos. Segundo o artigo, o verdadeiro lavrador poderia “ser muito versado nos trabalhos do campo, dar conselho aos inteligentes, sem por isso executar a coisa por si mesma”, ou seja, não seria necessário o trabalho realizado pelas próprias mãos, mas era “mister que tenha trabalhado e que saiba, sendo-lhe preciso, ensinar a prática aos que estão a seu serviço.” Mesmo que não tenha “tido ampolas nas mãos e a pele endurecida”, deveria conhecer o trato com a terra. Para cuidar de sua fazenda, deveria “deitar-se o último e levantar-se o primeiro”, dedicando todas as atenções para com a gente a seu serviço, tratando-as da melhor maneira possível.

Ao recorrermos à visão do memorialista Manoel Eloy dos Santos Andrade (1872-1948) no livro O Vale do Paraíba, identificamos que a imagem do “bom lavrador”, apresentada no jornal valenciano, era bastante disseminada nos círculos senhoriais oitocentistas. Segundo ele, este personagem era aquele que tinha amor à profissão agrícola e à terra, tendo “prazer em progredir, ver aumentada a produção, de ano a ano, não tanto pelos lucros que dela proviessem”, mas por seus próprios esforços e boa administração. Além disso, os próprios escravos deveriam ter suas roças, vender suas colheitas e ser sadios. Isto porque na boa lavoura eles se alimentariam bem e receberiam tratamentos médicos regulares.

Estas representações bucólicas foram muito disseminadas no Vale do Paraíba fluminense, região que conheceu grande abastança com a produção do café, gênero comercial que dinamizou a economia do Império brasileiro no século XIX. Muitos fazendeiros ficaram conhecidos por seus extensos patrimônios, recebendo regalias e promoções sociais do imperador, naturalizando-se a figura dos Barões do Café como representativa de toda aquela opulência. Eram eles os “bons lavradores” do jornal valenciano.

No entanto, a história das fazendas de café pode ser vista por outras perspectivas. Acreditamos que é possível embaralhar a memória da opulência conquistada por esses grandes senhores brancos, memória esta que foi construída para explicar a história do Vale, focalizando as ocupações de outros personagens históricos que ali também se fizeram presentes. Negros, indígenas, escravizados e livres também participaram dessa história e suas trajetórias apresentam um contraponto à ideia da boa lavoura, aquela propriedade perfeita, controlada e harmoniosa descrita no jornal. Até porque ter uma fazenda assim era um projeto bastante desejado pelos fazendeiros da época.

Comecemos com as terras indígenas. É comum a interpretação histórica de que as fazendas de café foram instaladas numa região de “fronteira aberta”, com ampla disponibilidade de terras a serem apropriadas pelos colonos pioneiros que começaram a se estabelecer por ali na virada do século XVIII ao XIX. Por outro lado, a instalação destes atores sociais foi bastante conturbada desde o princípio. Em 1789, o Vice-Rei Luiz de Vasconcelos e Souza, avaliava que

foi necessário praticar-se outra diferente providência pelas irrupções que [os indígenas] faziam n’aqueles distritos, assolando as fazendas circunvizinhas, furtando os seus efeitos, apresentando-se armados em figura de guerra, atacando e matando a todos os que lhe caíam infelizmente nas mãos, de modo que a maior parte dos fazendeiros que tinham os seus estabelecimentos do lado setentrional do rio [Paraíba do Sul], os abandonaram inteiramente, por não serem as suas forças capazes de lhes fazer a menor resistência (…).

Vê-se que os indígenas que ocupavam há bastante tempo aquela região resistiram ao avanço dos colonos brancos que tentavam construir suas fazendas, intensificando suas investidas naquele terreno que estava sendo “invadido”. Não se tratava de uma fronteira aberta e inabitada pronta para ser apropriada por fazendeiros aventurosos de se instalarem ali como “ocupantes pioneiros”. Nas correspondências entre as autoridades colonizadoras, identificamos que

os gentios que moram nas vizinhanças deste registro são os Coroados e Puris os quais são tão selvagens que não conhecem subordinação alguma: andam nus e só usam de um pequeno tecido de fio de guaxima (…) as armas que usam é arco e flecha e porretes. Suposto me informem que eles plantam milho, batatas e bananas; contudo devo dizer a vossa excelência que são uns vagabundos, pois não tem moradia certa porque (…), trazem cruzados todos os matos de forma que os fazendeiros que moram nesta distância para usarem das suas plantações trazem vigias armados e, não obstante, isto são continuados os roubos e mortes que fazem (…) deixaram lugares despovoados (…) fiz toda a diligência para os encontrar e não foi possível pela celeridade com que se retiraram (…). Os Rios Paraíba, Paraibuna, Preto e do Peixe os não embaraçam para irem onde eles querem (…).

“Floresta Virgem nas Margens do Rio Paraíba do Sul” de Jean-Baptiste Debret (1835). Fonte: The New York Public Library. Digital Collections. The Miriam and Ira D. Wallach Division of Art, Prints and Photographs.

Interessante observar que o termo “vagabundo” aparece justamente quando identificamos que os nativos perambulavam pelas matas por não terem uma moradia fixa. Neste caso, a reprodução elástica e móvel do modo de vida dos povos indígenas nos matos era uma marca definitiva do exercício de sua ocupação territorial: representava o largo espaço de assentamento e de mobilidade dos Coroados e Puris que percorriam as florestas para caçar, plantar e se “ajuntarem” na outra banda do Rio Paraíba do Sul.

Em vista disso, as autoridades luso-brasileiras buscaram realizar um cerco aos indígenas, em tentativas de confinar seu espaço de mobilidade. No início do século XIX, as políticas de “pacificação” (pela formação de aldeamentos) e as políticas de violência (pelos confrontos diretos com os indígenas) foram articuladas de modo a expropriar esses povos durante a primeira metade do século XIX. De qualquer forma, é importante frisar que suas ocupações espalhadas por todo aquele território foram empecilhos à formação das fazendas de café.

Com as fazendas já construídas e formadas, poderíamos pensar que o projeto dos senhores brancos foi materializado e a “boa lavoura” fosse cada vez mais próxima à realidade. No entanto, não é o que identificamos na segunda metade do século XIX nos processos judiciais do Vale do Paraíba. Terras de preto também existiram naquela região, muitas delas fixadas no interior das fazendas de café, como bem demonstrou a historiadora Elione Guimarães.

Inquérito policial de Valério, escravo do Barão da Vargem Alegre, na freguesia de São Benedito da Barra do Piraí em 1887. Código: 004.02.01.720. Fonte: Arquivo Municipal de Piraí (AMP).

Em 1887, um ano antes da abolição do cativeiro, tivemos notícia de uma batida policial nas terras da fazenda Vargem Alegre, no local chamado Grota do Patuá. Lá estava o cativo Reginaldo, foragido há dois anos, junto com o quilombola Valério, também fugido há dois anos. Valério tinha 40 anos, era casado, roceiro e crioulo, nascido na cidade de Piraí, outro importante município cafeeiro do Vale do Paraíba fluminense. Sempre andava armado e “roubava” as criações e mantimentos das fazendas vizinhas. Ele e Reginaldo eram conhecidos por serem “o terror das vizinhanças”. No lugar onde estavam, foram encontrados: porcos, carneiros, roupas, armas de fogo, cestos com mantimentos, carnes, sal e outros gêneros alimentícios. Construíram sua autonomia e buscavam viver independentes dos fazendeiros.

Interessante observar que os “furtos” praticados pelos dois quilombolas, habitantes das matas daquela localidade, serviam como estratégia para que eles construíssem suas ocupações. Ao invés de tratarmos estas práticas como crimes “contra a propriedade” alheia, valeria a pena entendê-las na lógica de práticas compensatórias por todo o trabalho extorquido e escravizado por senhores brancos, ainda na época em que estiveram sob o mando do feitor e da disciplina das fazendas de café. O furto pode ser visto como uma possibilidade de complementação monetária e alimentar. Uma prática costumeira relacionada à concepção de direito que os escravizados possuíam a respeito de uma justa compensação por seu trabalho, como nos demonstrou o trabalho da historiadora Maria Helena Machado.

Para além dos “furtos”, é possível que estes quilombolas também realizassem pequenas vendas e trocas com outros grupos. Como demonstrou o historiador Flávio Gomes, muitos quilombolas mantinham relações com os escravizados nas senzalas e até com homens livres. Deste relacionamento, é possível visualizar a transação de produtos extraviados da produção agrícola e cafeeira para fora das fazendas. Como permaneceram fugidos por dois anos, é provável que ambos tenham tecido relações com diversas pessoas. Apesar da batida policial ter desestruturado o seu modo de vida, é importante ressaltar como aquela “terra de preto” existiu, mesmo que nas margens do poder senhorial, ainda durante a vigência do cativeiro.

Com o pós-abolição, as últimas gerações de ex-escravizados do Vale do Paraíba intentaram reconstituir suas famílias e materializar o que as historiadoras Hebe Mattos e Ana Lugão chamaram de “projeto camponês”. O direito de controlar o próprio corpo, de comandar o trabalho dos seus, de ir e vir, de ter acesso a uma roça própria e de garantir a reprodução da família foi bastante evocado nas memórias dos egressos da escravidão no Vale do Paraíba no pós-abolição. Mas a principal expectativa deste grupo era a conquista efetiva da propriedade da terra. Não foi à toa que as letras de jongo denunciavam esta ausência na realidade material destas famílias negras, como podemos ver na seguinte passagem: “Dona Rainha me deu uma cama, não me deu um banco para me sentar. Um banco para mim sentar. Dona Rainha me deu cama não me deu banco para me sentar, ôIaiá.”

Esta expressão pode resumir uma expectativa daqueles que permaneceram, por gerações, tentando reproduzir um estilo de vida que correspondesse ao desejo de estabilidade e de autonomia. Quem sabe, para alguns, a falta de “um banco para sentar” fosse uma realidade a ser denunciada; mas, para outros, a luta pela posse de um território comunitário motivava grupos a reivindicarem a titulação das terras. Com o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, foi possível reconhecer direitos territoriais para os “remanescentes das comunidades de quilombos”, garantindo-lhes a titulação definitiva pelo Estado. No Rio de Janeiro, tal processo tem sido feito em estreita relação com o decreto 3.551 de 2000, que também permitiu que o jongo fosse reconhecido como patrimônio imaterial do país.

Buscamos visualizar neste texto outras lógicas de ocupação do território para além do título de propriedade dos Barões do Café, como estratégia narrativa para desmistificar a “boa lavoura”, aquela fazenda perfeita, controlada e harmoniosa tão desejada pelos fazendeiros. Reproduzir esta memória e reiterar a opulência conquistada pelos Barões silencia a história de outros atores sociais que também viveram naquela região e que buscaram construir sua autonomia, embora em condições adversas. Além das fazendas de café, teríamos também as terras indígenas e as terras de preto. Estas conviveram conflituosamente com as terras dos senhores brancos, e apresentaram-se como um contraponto ao mito do “bom lavrador”, ainda bastante evocado nas visitas atuais às fazendas no Vale do Paraíba.

Assista ao vídeo do historiador Felipe de Melo Alvarenga no Cultne TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula: 

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF07HI08 (7º ano: Descrever as formas de organização das sociedades americanas no tempo da conquista com vistas à compreensão dos mecanismos de alianças, confrontos e resistências); EF07HI09 (7º ano: Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações ameríndias e identificar as formas de resistência); EF07HI12 (7º ano: Identificar a distribuição territorial da população brasileira em diferentes épocas, considerando a diversidade étnico-racial e étnico-cultural (indígena, africana, europeia e asiática); EF08HI14 (8º ano: Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas); EF08HI17 (8º ano: Relacionar as transformações territoriais, em razão de questões de fronteiras, com as tensões e conflitos durante o Império); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados; EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS203 (Comparar os significados de território, fronteiras e vazio (espacial, temporal e cultural) em diferentes sociedades, contextualizando e relativizando visões dualistas (civilização/barbárie, nomadismo/sedentarismo, esclarecimento/obscurantismo, cidade/campo, entre outras)]; EM13CHS204 (Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas).

Felipe de Melo Alvarenga

Doutorando em História pela UFF

Integrante do podcast Atlântico Negro

E-mail: f.m.alvarenga@hotmail.com

Instagram: @f.m.alvarenga


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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