Tirada a gás com água: uma mulher negra vestida de auto amor incomoda

Enquanto me arrumava para ir à confraternização do Dia dos Professores promovida pela instituição de ensino onde leciono, um filme passou pela minha cabeça. E dessa vez o roteiro foi sobre altivez e amor-próprio e não de dor, como a maioria das histórias de mulheres negras pós diáspora e em razão da objetificação escravista e seus desdobramentos. Diante do espelho, gostei do que vi e isso não é comum para mulheres racializadas. Por racialização tomo como referência a definição do conceito dada por Appelbaum, Macpherson e Rosemblatt que a veem como “processo de caracterização das diferenças humanas de acordo com os discursos hierárquicos estabelecidos desde o período colonial e os legados nacionais de cada marcador”.

Nesse sentido, o processo de tornar-se racializado está intrinsecamente ligado à construção de marcadores de diferença a partir dos contextos social e cultural e dos traços fenotípicos presente nos discursos de quem se declara humano universal, modelo e detém mecanismos de dominação. Nem é preciso muito esforço para saber de onde partiram tais discursos desde a modernidade. Em Peles Negras, Máscaras Brancas, Fanon analisa algumas dimensões sociais da relação entre brancos e negros na qual os primeiros determinaram não apenas que representam o padrão de humanidade como também criaram a categoria de “Outro” para se referir a nós negros, o que se aplica também aos indígenas, amarelos e todos os que não tinham os atributos que brancos naturalizaram como exclusivamente seus.

Agora, minhas memórias e referências de beleza e cuidados.

Venho de uma família de pretas vaidosas que sempre se cuidaram, se adornaram, mesmo com pouquíssimos recursos e em meio à premência do sustento dos seus, como matriarcas e provedoras do lar. A semana difícil, de labor e ganho incerto era recompensada pelo final de semana dedicado ao autocuidado com direito a banhos de folha demorados, cabelo alisado à pente de ferro quente, a preocupação em manter a pele hidratada com banha de cacau ou óleo de rícino quando faltava o creme industrializado para tirar o aspecto ressecado e esbranquiçado da pele. ”Negra, sim, com orgulho. ‘cinzenta’ não”, dizia minha avó Conceição à minha mãe, que repassou a mim tal recomendação sobre o cuidado com a pele. 

Numa época em que não se contava com lojas de departamento e comprar uma roupa pronta não era acessível às mulheres pobres, minhas ancestrais recorriam à costureira do bairro para quem levavam os cortes de tecidos comprados na promoção, nos balaios das sobras para que reproduzisse os modelos da revista Manequim. Assim, apareciam sempre bem arrumadas nos eventos em que eram convidadas em sinal de respeito a quem lhes fez o convite e para não serem associadas ao desleixo, como o racismo sempre nos associou. Cresci vendo minha mãe, tias e primas promovendo estes momentos de cuidado de si e com as outras, partilhando saberes de beleza e repassando como ensinamento às mais novas. Entre os conselhos, o de que exalássemos o cheiro de banho tomado, de limpeza e que cuidássemos do cabelo para não aparentar descuido. Para tanto, recorriam aos produtos in natura, como o tutano de boi, que conseguiam com a açougueiro amigo e a babosa, nome popular da aloe vera para deixar os fios macios antes do sofrimento e queimaduras no couro cabeludo causados pelo alisamento a ferro. Não dava para esperar que tivessem, à época, a mesma relação que as novas gerações têm com o seu crespo tipo 4.

Hoje, quando a identidade racial se encontra bem resolvida e liberta das amarras do auto ódio, consigo visualizar estes momentos como algo além de cuidados de feminilidade, mas como tecnologia ancestral de (r)existência. Mesmo sem ter consciência ou posicionamento identitário, minhas mais velhas buscavam a humanidade que nos foi negada, que passa também pela reivindicação dos atributos de dignidade, como sentir-se bela e bem cuidada.  

A desumanização promovida pela opressão racial, entre outras violências, nos impõe a fealdade, além de querer ver o corpo negro como símbolo de escassez e miséria, por isso pessoas negras que andam bem vestidas, que deixam o rastro do seu perfume quando passam, provocam uma surpresa incômoda e, não raro, recebemos a pecha de metidas/os. Na Bahia, onde nasci e me criei, algumas expressões dão a medida deste incômodo, tais como: “só quer ser o que o calendário não marca” e “tirada a gás com água”. Vê-se que este inconformismo (racista) tem como alvo a mulher negra, como se não pudéssemos experimentar a dignidade que envolve os cuidados com o corpo e a elevação da autoestima, o que não nos surpreende tendo em vista o lugar que ocupamos na hierarquia criada por uma sociedade racializada, racista e machista.

 Nos detestam e detestam ainda mais nos ver bem e em lugares que “não deveríamos estar”. Maju Coutinho que o diga. Sendo a apresentadora mais elegante e bem vestida da emissora em que trabalha, sofre com os ataques que colocam sua competência profissional sob constante suspeição. Agora, imaginem se ela ainda aparecesse vestida sem o cuidado com que aparece diariamente? Seria muito pior, sem dúvida. A cada vez que a vejo belíssima penso que somos forjadas para nos movermos para além da dor e da falta e que este é um aprendizado ancestral.  

Lélia Gonzalez em suas entrevistas falava que a situação da mulher negra “é barra pesada” diante do imperativo de que servíssemos aos papeis de mulata, doméstica e mãe preta. Mas aí vem esta memória de cuidado, ritos de beleza e criatividade das minhas mais velhas provocando um efeito insurgente de altivez irradiada que me fez amar o resultado da produção para a festa de que falei no início desse escrito, independente do que viessem a pensar ou dizer, por que em mim habita um auto amor inédito e revolucionário.


 Joselice Souza é Mestra em Educação pelo PPGE da Universidade Estadual de Feira de Santana, Professora da rede estadual de ensino – BA, Militante feminista antirracista.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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