Todo menino é um rei…” exceto se o menino for, preto pobre, periférico ou favelado

… A vida que eu sonhei no tempo que eu era só
Nada mais do que menino. Menino pensando só
No reino do amanhã. A deusa do amor maior
Nas caminhadas sem pedras. No rumo sem ter um nó…”.
(Roberto Ribeiro – Todo menino é um rei).

por *Sheila Dias via Guest Post  para o Portal Geledés

Questões como violência racial, violência doméstica, racismo ambiental, drogas, etc. são bem “comuns” a nós população negra. Digo comuns e não natural, apesar de naturalizadas. É comum ver corpos negros arrastados pelo chão ou jogados à margem dos becos e vielas que limitam a vida na favela ou nos bairros periféricos.

Também é comum a máxima vigente nessa sociedade apodrecida, que determinados crimes são mais “explicáveis” para uns e até aceitos para outros. Até aonde eu sei, qualquer ação que danifique, destrua ou aliene a vida deve ser condenada. Não me surpreende mais que crimes cometidos contra brancos, ricos e classe média tenham maior repercussão do que crimes perpetrados contra os jovens negros, pobres e favelados. Afinal de contas, uma vida é menos vida do que outra, e nós negros (as), já fomos julgados e condenados desde o ventre materno, pois, temos a cor da noite e as marcas (in) visíveis dos grilhões e açoites. Somando se a isto, atados aos nossos pescoços, está o peso de sermos filhos e filhas da classe trabalhadora, portanto, herdeiros (as) de toda a sorte de maldições impetradas pelo racismo, capitalismo e pela sociedade classista.

Há pouco tempo, o mundo assistia e chocava-se com o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo. Observei que muitos amigos, colegas, ativistas e militantes de diversos movimentos políticos se solidarizavam em suas páginas sociais com os franceses. Numa tentativa de demostrar sua indignação, compartilhavam a frase “Je suis Charlie”, ou seja, “eu sou Charlie”. Isso mesmo, a frase foi compartilhada em francês, a mesma língua que autrora fora usada para promover uma política glotocida.

Percebam, não estou aqui defendendo os “terroristas” que praticaram tal barbaridade, não tenho absolutamente nada contra a França e o seu povo, estou apenas, seguindo a tentativa de dizer que existem indignações e indignações…

Na mesma semana do atentado supracitado, outra grande chacina. Diversos meios de comunicação noticiavam que aproximadamente 2.000 mil pessoas (isso mesmo, 2.000 mil pessoas) foram mortas na Cidade de Baga – Nigéria. O crime foi cometido pelo grupo terrorista (que alguns classificam apenas como extremistas) Boko Haram. De acordo com a Anistia Internacional, “cerca de 2 mil pessoas foram mortas e 3,7 mil casas e negócios foram destruídos no incidente, que aconteceu em 03 de janeiro .” Este grupo, também é o responsável pelo sequestro de aproximadamente 600 meninas nigerianas no ano passado, e que até hoje não temos notícias sobre o que aconteceu com boa parte delas.

Pois bem, entre os preparativos para o carnaval, a minha Bahia amanheceu de luto este final de semana. Em apenas três dias, QUINZE (15) JOVENS NEGROS FORAM ASSASSINADOS PELO BRAÇO ARMADO DO ESTADO. TREZE (13, mesmo número que representa a legenda do PT), sim, e TREZE DELES DE UMA SÓ VEZ. E o mais terrível disso tudo, foi ter que ouvirmos do Governador do Estado, o senhor Rui Costa do PT, dizer que:

“… É como um artilheiro em frente a um gol, que tem que decidir em alguns segundos como é para colocar a bola para fazer um gol… A polícia, assim como manda a constituição e a lei, tem que definir a cada momento, e nem sempre é fácil fazer isso. Qual o limite de energia e de força? Tem que ter a frieza necessária e a calma necessária e a escolha muitas vezes não resta muito tempo. São alguns segundos que nós temos para decisão .” 

Assim, o representante do Estado contou sua façanha e como um pai orgulhoso, legitima a ação da Polícia Militar, ao mesmo tempo em que as famílias dos jovens choram suas mortes prematuras. Notem ainda, que o Governador Rui Costa, não pertence a qualquer partido político, ele pertence ao PT, partido este oriundo das camadas populares, que desde que eu me entendo por gente, ouço dizer que ele é o partido, “surgido do povo para o próprio povo”, pelo menos é que dizem por aí.

Enfim, tive que dar todo esse rodeio, pra dizer que estamos perdendo a nossa capacidade de indignar-se. E é nisto que quero me ater. Observo que há um perigo eminente a nós se esta capacidade nos for perdida. Acredito fielmente que esta capacidade é o que nos move a lutar contra as injustiças vivenciadas por nós cotidianamente. É dela que em parte, retiramos o grito engasgado em nossas gargantas e os transformamos em ferramentas de luta, isto também é o que não nos permite assistir atônitos e bestializados ao extermínio dos nossos jovens, bem como a outras injustiças sociais, culturais, econômicas e políticas.

Não podemos permitir que nos silencie, apesar de tantas políticas orquestradas para isto. Não quero esperar pelo próximo assassinato em série para que meu grito seja ouvido… É um silêncio ensurdecedor, ecoando todos os dias, “nossos representantes” apenas se calam, se calam e se calam… Calam-se mesmo diante da barbárie imposta a nós a cada segundo. Isto me traz a infeliz certeza de que este silêncio foi comprado pelo mísero cascalho do falso poder e da falsa aceitação racial e social, e é por isso, que estão resignados e assistem a tudo sem nada dizer. É como se estivéssemos novamente aprisionados aos “navios negreiros”, só que desta vez, presos sem correntes visíveis, mas sim em ideologias como a do “salve-se quem puder e que Deus nos proteja”.

Por fim, quero afirmar que todas essas mortes não são em vão… Há em curso, uma política de limpeza étnica e racial, que objetiva expurgar a “corja” que macula e enfeia a cidade antes das grandes festas, e este é o fator determinante para que a casa seja limpa, afinal de contas, receberemos “visitas”… Será mesmo que já esquecemos a “grande faxina” que o Brasil passou antes da copa do mundo? Eu não esqueci e não esquecerei por tão cedo. Afinal de contas, vi que a cobrança veio a galope, pois um placar marcado pelo número sete (7), número que traduz a perfeição, não se pode esquecer facilmente.

Seja no Rio, na Bahia ou em qualquer parte deste país e do mundo, quero que minha voz ecoe em conformidade com os meus irmãos e irmãs e com quem mais quiser chegar para compor a marcha, na luta contra a animalização da vida e a barbárie vivenciada. Uma vez, alguém me contou que Martin Luther King disse que o que o preocupava, “não era o grito dos maus, mas sim o silêncio dos bons…” Confesso que assim como King, eu também estou bastante preocupada com tanta gente boa calada.

Quero assim como ele, Mandela, Malcolm, Anastácia, Aqualtune, Zumbi, Dandara, Harriet Tubman e tantos outros (as), continuar sonhando. Mas quero mais do que tudo, que nossos meninos e meninas possam crescer e viver em uma sociedade, onde a cor da pele, a posição social e o limite do cartão de crédito não sejam condições pré-estabelecidas para que tenham VIDA.

Assim como em tantos outros anos, o abada da folia está marcado com sangue, o sangue negro. E sobre isto, não vou me calar, vou colocar o meu bloco da indignação na rua, não só no carnaval, mas se necessário, desfilarei com ele o ano inteiro.


 

*Assistente Social – Formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social também pela UFRJ. Pesquisadora na área de relações raciais, gênero e política social. Militante, negra, feminista e nordestina de pai e mãe.

+ sobre o tema

Racismo disfarçado de brincadeira no trabalho também é crime

A discriminação racial no Brasil ainda é um obstáculo...

O legado político do Manifesto do Coletivo Combahee River

Recentemente foi publicada a tradução em português do Manifesto...

Angolano morto a tiro no Brasil, à frente da filha de três anos

Walter Etna Duvall (na foto), angolano residente no Brasil...

para lembrar

O esporte é incapaz de curar o ódio racial

Chocado com as imagens que correram o mundo de...

Pesquisa mostra que 24% das escolas públicas não discutem o racismo

Sonora: “Acabar com o racismo é importante porque, tipo,...
spot_imgspot_img

Cinco mulheres quilombolas foram mortas desde caso Mãe Bernadete, diz pesquisa

Cinco mulheres quilombolas foram mortas no Brasil desde o assassinato de Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernadete, em agosto do ano passado. Ela era uma das...

Independência forjou nação, mas Brasil mantém lugares sociais de quem manda

Em pleno dia em que celebramos a independência do Brasil, vale questionarmos: quem somos enquanto nação? A quem cabe algum direito de fazer do...

Os outros

O que caracteriza um movimento identitário é a negação de princípios universais somada à afirmação de um grupo de identidade como essencialmente diferente dos "outros" e...
-+=