Tragédia yanomami: ao trocar uma catástrofe por outra, anistiamos o horror

FONTEUOL, por Ana Flávia Magalhães Pinto
Ana Flávia Magalhães Pinto /Foto: Webert da Cruz

570 crianças yanomamis morreram de fome nos últimos quatro anos“. A notícia surpreendeu e comoveu muita gente. Os números, a faixa etária, a identidade étnica, o tempo do acontecimento, o desfecho absolutamente evitável. O encontro com as imagens dolorosas dessa tragédia fez com que uma pergunta retórica fosse mobilizada novamente: Como chegamos a esse ponto?

Embora o questionamento seja feito na primeira pessoa do plural (nós), as respostas tendem a apontar para sujeitos bem específicos (eles, ele ou ela). A tentação de permanecer nessa zona de conforto controversa é grande. Ocorre que, de fato, todos, todas e todes somos responsáveis pelo que chamamos de barbárie e desumanidade em mais este momento. Mesmo tendo diferentes graus de consciência e envolvimento.

As informações a que tivemos acesso sobre o caso específico são apenas parte do diagnóstico preliminar feito pela equipe do Ministério da Saúde enviada ao estado de Roraima na última quarta-feira (18/1) com o objetivo de dimensionar a situação. Estamos diante da ponta de um iceberg? Certamente, mas é importante registrar que temos lidado com outras evidências até mais robustas que remetem a séculos atrás. Elas, contudo, parecem não assumir contornos de uma inaceitável gravidade. Eis de onde se viabiliza a renovação permanente do espanto, que demanda um próximo evento da mesma natureza.

Isso acontece porque, em larga medida, aprendemos a lembrar anistiando o horror. Na contramão disso, aprender a pensar com as experiências indígenas no centro, por exemplo, mostra-se um procedimento estratégico para compreendermos todo o resto. Sendo nossa história nacional atravessada por projetos de genocídio de povos indígenas, de africanos/as e seus/suas descendentes, não podemos nem sequer cogitar a remição desse trauma coletivo mediante a crença na vigência de uma democracia racial. Até porque esse mito nunca encontrou verossimilhança em nosso cotidiano. Pelo menos não se mantivermos o olhar sobre as desigualdades e desníveis de cidadania e acesso a direitos entre os diferentes segmentos da população brasileira.

Lembrar para não repetir – a memória de Moïse Kabagambe

Vivendo numa sucessão de violações aos direitos humanos, acabamos substituindo uma tragédia por outra, fazendo disso algo natural. Os casos vão, quando muito, se assentando em nossa memória como peças de um antiquário, coisa do interesse de colecionadores. Mas dá para fazer diferente.

Há um ano, no dia 24 de janeiro, o jovem congolês Moïse Kabagambe, um refugiado, foi morto vítima de um linchamento, praticado sob a observação de várias pessoas num quiosque na orla da Barra da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro. Ele havia ido ao local reclamar pelo pagamento por horas de trabalho realizado.

Tão logo o crime chegou ao conhecimento de um público ampliado, houve quem chamasse a atenção para o fato de que não se tratava de um episódio isolado, mas sim da expressão de uma longa tradição de racismo antinegro no Brasil. Pouco depois, em 2 de fevereiro, Durval Teófilo Filho, brasileiro negro, foi assassinado a tiros por seu vizinho ao se aproximar da entrada do condomínio onde morava em São Gonçalo, também no estado do Rio de Janeiro.

A julgar até mesmo pela reação violenta contra o protesto do hoje deputado estadual no Paraná Renato Freitas, eu estava entre quem dava por certo que o caso Moïse cairia no esquecimento coletivo e institucional. À época vereador por Curitiba, ele saiu à rua em defesa de justiça por essas e outras pessoas negras assassinadas por motivo fútil e quase perdeu seu mandato.

No início desta semana (23/1), porém, uma iniciativa mobilizada pela presidenta do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Sheila de Carvalho, dentro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, me chamou atenção justamente pela possibilidade de representar uma mudança de postura. Na chave do lembrar para não repetir, o ministro Flávio Dino veio a público para a assinar a Implantação do Observatório Moïse Kabagambe – Observatório da Violência contra Refugiados no Brasil e a Portaria n. 290/2023 para instituir um grupo para a criação da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, programa de atenção ao refúgio para pessoas afrodescendentes.

(Da dir. para esq.) Maurice Mugenyi, irmão mais velho de Moïse Kabagambe; Lotsove Lolo Lavy Ivone, mãe do congolês; a presidenta do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Sheila de Carvalho; e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. (Imagem: Imagem: Ana Flávia Pinto Magalhães/UOL)

A iniciativa tem o potencial de estimular que o Brasil promova um acerto de contas com sua própria história, de país cuja primeira Constituição instituiu, embora sem explicitar, a condição de apátridas a africanos libertos. Algo que facilitou e muito os crimes de reescravização ao longo do século 19 e, por que não dizer, até hoje.

Reconhecer o problema para superá-lo

Já disse em outro momento que sujeitos coletivos inviabilizados no presente fazem pouco ou nenhum sentido no passado, bem como no futuro. Em se tratando, especialmente, da vida de segmentos sociais discriminados, torna-se cada vez mais evidente que não será possível apostar na garantia da dignidade humana sem a revisão da maneira como esses indivíduos e coletividades têm sido posicionados nas diferentes dimensões do tempo.

Já parou para pensar, por exemplo, que a forma como o tempo é marcado nos livros de história determina quem são os sujeitos protagonistas e quem são os acessórios? A definição de eventos históricos decisivos está articulada com a afirmação de sujeitos específicos, aqueles que de fato importam. Na escrita da história, as marcações de tempo e espaço são atravessadas pelos jogos de poder das próprias sociedades em que estão inseridas. Nada é por acaso ou natural. As narrativas históricas são formas possíveis de fixar sentido ao vivido em sociedade.

Sendo assim, não basta uma revisão histórica restrita à incorporação de personagens indígenas, negros/as mulheres e LGBTQIA+, etc. a uma matriz narrativa construída a partir da ideia da centralidade do homem-branco-heteronormativo-concentrador de renda. Mudanças de rota nos fundamentos teóricos são imprescindíveis para se ter uma história de fato antirracista, antissexista, antiLGBTQIA+fóbica, antixenofóbica, etc.?

Não estando restrito aos círculos de especialistas, os sentidos de um letramento histórico para a cidadania e a dignidade humana precisam ser elaborados por amplos setores da nossa sociedade.

A história indígena como medida

A fim de provocar reflexões futuras, façamos um exercício sobre como a presença indígena na história do Brasil ainda hoje é abordada na principal orientação curricular vigente, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC. O documento está subdividido por níveis de ensino, áreas de conhecimento e, no caso do ensino fundamental, por séries. Os conteúdos das séries são apresentados num quadro subdividido em unidades temáticas, objetos de conhecimento, e habilidades.

Na sétima série, a disciplina história prevê a habilidade “Identificar a distribuição territorial da população brasileira em diferentes épocas, considerando a diversidade étnico-racial e étnico-cultural (indígena, africana, europeia e asiática)”, associada ao objetivo “Resistências indígenas, invasões e expansão na América portuguesa”. Na série seguinte, as experiências indígenas de destaque no período imperial principia pelo objetivo “A tutela da população indígena, a escravidão dos negros e a tutela dos egressos da escravidão”. Daí, passa pelas “Políticas de extermínio do indígena durante o Império”, para chegar abruptamente ao objetivo “A questão indígena durante a República (até 1964)”.

A pergunta que fica é: A partir desse roteiro reflexivo, como as/os estudantes perceberão a densidade da história indígena na história do tempo presente se esse segmento populacional foi anunciado como exterminado ainda no século 19? Mais do que preencher o período com fatos soltos e excepcionais de marcação de uma presença subalterna, precisamos reorganizar o modo de contar as nossas histórias.

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