A taxa de transmissão da covid-19 (Rt) no Brasil bateu recorde em 25 de janeiro de 2022, chegando a 1,78 (100 infectados podem transmitir para 178 indivíduos), segundo monitoramento do Imperial College de Londres. Uma semana antes, a taxa era de 1,35. A responsável é a variante ômicron, muito mais transmissível que as anteriores.
Apesar da disparada de casos entre a população adulta ocorrer desde dezembro no país, de acordo com o último boletim epidemiológico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o aumento de casos de síndrome respiratória aguda grave entre as crianças de zero a 9 anos teve início muito antes, em outubro de 2021.
Os efeitos de três meses seguidos de alta nos casos de coronavírus entre a população infantil são sentidos agora: levantamento da Folha de S. Paulo publicado em 26 de janeiro mostrou que, em pelo menos sete estados, a ocupação dos leitos de UTI covid para crianças está em 80% da capacidade. Em alguns deles pode chegar a 100%.
Se a transmissibilidade recorde atribuída à variante ômicron não explica isoladamente a atual crise de leitos de UTI covid pediátrica, ela expõe um problema estrutural muito anterior à pandemia.
“O cenário de vagas em unidades de terapias intensivas pediátricas no Brasil em geral é insuficiente desde sempre. Essas UTIs vivem cheias em qualquer período e contexto”, observa o pediatra infectologista Marco Aurélio Sáfadi, diretor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Por que os casos de SRAG cresceram
Assim, de acordo com o Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o aumento dos casos de síndrome respiratória aguda grave desde outubro e a atual lotação dos hospitais se deu por quatro motivos:
– Apesar de não ser mais letal do que as demais variantes, a ômicron tem infectado mais as crianças, a única parcela da população que ainda não se vacinou contra a covid-19 – a imunização a partir dos 5 anos teve início apenas em 17 de janeiro e caminha a passos lentos por todo o país. As crianças, principalmente as pequenas, são, neste momento, as mais expostas à infecção;
– Junto com o aumento da transmissão do coronavírus, os meses de novembro e dezembro foram marcados por uma epidemia de influenza fora de época, com um vírus para o qual ainda não há vacina, o H3N2;
– O Brasil flexibilizou as medidas sanitárias contra a covid-19;
– A rede hospitalar brasileira, tanto no SUS como na rede privada, tem uma carência crônica de leitos pediátricos. Qualquer evento adverso na saúde do público infantil pode sobrecarregar os hospitais.
Mesmo que não haja evidências científicas de que a ômicron seja mais letal do que outras variantes, apenas em 2022, até 27 de janeiro, 29 crianças de zero a 11 anos morreram por causa da covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde solicitados pela DW Brasil.
A DW Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre a disparada dos casos entre as crianças, assim como solicitou a quantidade desses casos de mês a mês, mas não teve retorno da pasta para essas demandas.
Um leito para cada 430 crianças
O país tem 82.699 leitos para internação pediátrica, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), mantido pelo Ministério da Saúde. Em contrapartida, a população infantil brasileira (zero a 12 anos) é de 35,5 milhões, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia Espacial (IBGE). Ou seja, o país oferta um leito para cada 430 crianças.
“Existem muito poucos leitos de UTI pediátrica no Brasil como um todo”, diz o pediatra infectologista do Departamento Científico de Imunizações da SBP, Eduardo Jorge Lima.
Do total de leitos pediátricos, 36.370 unidades – o equivalente a 43% – estão no Sistema Único de Saúde (SUS) e somente uma pequena parte em cada estado se destina à internação pela covid-19.
É o caso do Mato Grosso do Sul, listado no levantamento da Folha de S. Paulo. Segundo o boletim do governo estadual desta sexta-feira (28/01), o estado está com 100% das UTI covid pediátricas ocupadas. A taxa assusta, mas os dados indicam que o estado tem apenas cinco leitos de UTI covid destinados à internação de crianças.
O problema não é recente nem exclusivo de uma região, contudo. E como a oferta de internação pediátrica no Brasil trabalha no limite, tanto na rede pública quanto privada, qualquer aumento na demanda pode levar à lotação dessas unidades.
“Quando aconteceu o aumento de síndrome respiratória aguda grave entre as crianças no final de 2021, tanto pelo vírus influenza H3N2 como pela ômicron, o cenário apenas reforçou a carência crônica dos leitos pediátricos no país”, afirma Lima.
Segundo o pediatra, o problema não é recente, e a Sociedade Brasileira de Pediatria alerta há anos que o SUS vem perdendo leitos pediátricos: desde 2010, foram fechadas mais de 12,4 mil vagas em UTIs pediátricas de todo o país.
Sobrecarga indireta pela ômicron
Marco Aurélio Sáfadi diz ser a primeira vez na pandemia em que, no momento da internação de crianças por outras doenças que não a covid-19, descobre-se que elas estão com o coronavírus Sars-Cov-2.
“Em função de a variante ômicron ser muito transmissível, temos pacientes infantis que internam por outros problemas de saúde que não a covid-19, mas estão infectados com o vírus. Ou seja, a internação não é pela covid, mas com covid”, explica o pediatra infectologista da Santa Casa de São Paulo.
Com isso, apesar de serem internados por causa de outras doenças, os pacientes infantis infectados precisam ficar isolados e acabam ocupando leitos e enfermarias destinados à covid-19.
“É um fenômeno que não víamos com as outras variantes. Antes, com a delta, a principal causa da internação infantil era a complicação da covid. Agora, o grande problema é a quantidade de crianças nas enfermarias que – por também estarem com coronavírus, mas terem procurado o hospital por outros motivos – precisam ficar isoladas. Isso gera uma restrição ainda maior na nossa disponibilidade de vagas”, completa Sáfadi.
“Vacinação infantil o quanto antes”
Desde o início da pandemia, 1.503 crianças de zero a 11 anos morreram por covid-19 no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. Mais de 78% destes óbitos (1.179) foram entre as crianças de zero a 4 anos.
“Temos observado desde o início da pandemia que as crianças com até 2 anos são mais suscetíveis aos casos graves da covid”, diz Sáfadi, ressaltando que o primeiro ano de vida é período de maior risco de eventos mortais para qualquer doença respiratória, por causa da imaturidade imunológica.
Mesmo que a variante ômicron não tenha se mostrado mais mortal que a delta, somente em janeiro de 2022 ela já foi responsável pela morte de 14 crianças de 5 a 11 anos, faixa etária que poderia estar sendo imunizada desde dezembro, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a vacina da Pfizer para esse grupo.
“A vacina pediátrica contra a covid protege contra os quadros agudos de síndrome respiratória aguda grave, vai diminuir as internações de crianças por covid, vai diminuir os casos de síndromes inflamatórias, além de ajudar a diminuir a circulação do coronavírus na comunidade. Por isso, esperamos que todas as crianças sejam vacinadas o quanto antes”, diz Lima.
O pediatra da SBP lembra que o Chile já vacina crianças acima dos 3 anos com a Coronavac, e como a aprovação do imunizante no Brasil “foi baseada nos estudos de efetividade do Chile, esperamos que se libere logo a vacinação também para menores de 5 anos”.
Falta de escola também prejudica a saúde
Apesar de a maioria das crianças ainda não ter tomado a vacina contra a covid-19 e o Brasil estar vivendo um aumento nos casos diários, tanto a Sociedade Brasileira de Pediatria quanto os especialistas ouvidos pela reportagem defendem a retomada das aulas presenciais.
“Um dos aprendizados destes dois anos de pandemia é que a escola nunca representou um foco de transmissão do coronavírus na comunidade. É claro que infecções ocorrem na escola, mas ela nunca foi responsável pelas explosões de casos que vimos ao longo da pandemia”, explica Sáfadi.
“O afastamento das crianças das escolas aumentou muito a incidência de depressão infantil e prejudicou o desenvolvimento cognitivo, além de ter colocado em risco a saúde alimentar das crianças mais carentes”, complementa o pediatra infectologista.
Contudo, o cuidado deve ser maior com crianças menores: “Crianças abaixo de um ano são mais frágeis às doenças respiratórias. Além disso, não teremos tão cedo vacina aprovada para esse grupo etário. O ideal seria oferecer uma segurança maior a elas e deixá-las em casa, se possível”, pondera Sáfadi.
Para que os casos infantis não continuem a subir, os especialistas afirmam ser imprescindível para a retomada das aulas o uso de máscaras tanto pelas crianças quanto pelos profissionais da educação. Estes últimos devem usar máscaras mais eficazes contra a transmissão, do tipo N95 ou PFF2, além de serem responsáveis por garantirem salas de aula ventiladas, distanciamento social entre as crianças e a constante higienização das mãos.
“A criança não se contamina sozinha, ela se contamina de um adulto. Então, estes devem redobrar os cuidados com as crianças, principalmente as que ainda não têm vacina aprovada”, alerta Lima. “O fechamento das escolas foi tão danoso que a SBP tem a convicção que a escola é um ambiente que deve ser preservado ao máximo para ter aulas presenciais.”
Previsão do cenário futuro
O boletim da Fiocruz da última semana de janeiro prevê uma melhora nos casos de influenza no grupo etário de zero a nove anos, mas alerta para a tendência de aumento nos casos de covid-19.
“Esta reversão na tendência de novos casos em crianças pode estar associada à redução na transmissão de casos de vírus sincicial respiratório (VSR) e de influenza (gripe), que eram as principais causas de SRAG nessa faixa etária (zero a nove anos), enquanto os casos associados à COVID-19 aparentam manter crescimento”, diz o boletim da Fiocruz de 27 de janeiro.
A redução nos casos de influenza entre as crianças nas próximas semanas já era esperada, segundo Sáfadi: “Já começamos a perceber diminuição dos casos quando comparado ao mês de dezembro.”
“Como já é esperado anualmente, temos um período de pico de casos de influenza com duração determinada, seguida por uma tendência de diminuição dos casos. O que aconteceu neste período foi um pico de influenza totalmente fora de época, no meio do verão, quando não costumamos ver o vírus circular”, explica Sáfadi.
Em relação às transmissões de coronavírus, Eduardo Jorge Lima afirma que a primeira quinzena de fevereiro deverá ser acompanhada, para que sejam tomadas novas decisões sobre o futuro da pandemia no país.
“A expectativa é que a ômicron alcance o ápice das transmissões no Brasil nas próximas duas semanas, e depois ou alcance um platô ou comece a cair, como vimos com as outras variantes, como com a ômicron na África do Sul, no Canadá e na Austrália”, diz o infectologista da SBP.
Já o pediatra Sáfadi pondera que ainda é cedo para predizer os rumos da pandemia de covid no Brasil: “É difícil se prever quando haverá o pico de casos da ômicron, porque há muitas peculiaridades no caso do Brasil. Somos um país continental, ou seja, o aumento dos casos não aconteceu em todo o país ao mesmo tempo, cada região tem uma realidade.”
“É possível que ocorra aqui a diminuição que estamos vendo no Reino Unido e na África do Sul, mas precisamos lembrar que, pelo menos com as outras variantes, a curva epidemiológica se manteve num platô por mais tempo no Brasil que em outros países, até os casos começarem a baixar”, compara o pediatra da Santa Casa de São Paulo.