Um risco a frente: a banalidade das mortes

Março foi um mês atípico. Abril tem demonstrado que a normalidade dos dias é um sonho ainda distante. Os gráficos com mortos e contaminados tem postergado qualquer fio de esperança. Novos cotidianos são instaurados: checagens térmicas, lojas fechadas, isolamentos, saudades. Também novos debates: negacionistas usam das mais cínicas das máscaras para nos dizer das desigualdades e dos limites de alguns para manterem o isolamento. Reivindicam o retorno da economia como se tal medida expressasse apenas a preocupação em atender o alto número de trabalhadores do Brasil que atuam na informalidade nos últimos anos[1].

Apesar de falaciosas, as preocupações negacionistas chamam a atenção para cenários reais: as pessoas ainda estão nas ruas. Noticiários mostraram primeiro a exposição de grupos mais empobrecidos nas filas para recebimento de doações de cestas básicas[2] em Salvador. Mais tarde, no Rio, sujeitos desconhecedores de smartphones e ainda não integrados à moderna sociedade da informação se aglomeraram nas filas da Caixa Econômica Federal ou passaram a noite em frente à Receita Federal[3] para que pudessem receber o auxílio. Na Bahia, auxílios do governo Estadual para os estudantes das escolas públicas do estado levaram a extensas filas na frente dos supermercados[4].

Exposições reais. Riscos resultantes dos regimes de desigualdade existentes, indícios dos limites impostos para os mais empobrecidos obedecerem ao isolamento social. Não porque o comércio está fechado, a reabertura dos precarizados postos de trabalho informal está longe de oferecer qualquer solução, pelo contrário, intensificariam ainda mais o problema.

São notícias que denunciam os regimes de (des)humanidade que grupos empobrecidos costumam estar expostos e naturalizar tal condição. A extensão das filas, bem como o desrespeito a quaisquer distancias sugeridas são resultado da desinformação dos populares brasileiros. Habituados a cotidianos rigorosos, ainda encontram no Coronavírus uma ameaça aquém das que estão acostumados a enfrentar no duro dia a dia. A desinformação somada a naturalidade de arriscar-se são reflexos da (des)humanidade autorizada aos mais pobres.

A política soberana sobre o direito de matar, destacada por Achile Mbembe, se efetiva através da inscrição de inimigos. Mbembe fala sobre a produção ficcional de inimigos que detém efeitos de verdade, ou seja, alguns corpos dotados de determinadas características podem ser tomados por inimigos sociais e, só por isso, ter sua morte socialmente legitimada. Tais mortes não se materializam necessariamente em políticas de execução (fuzis e guilhotinas), mas mediante regimes de negação da vida. A naturalização do risco de contaminação e, consequentemente, da morte é um dispositivos de negação da vida, é uma afecção de (des)humanidade.

Tais desumanizações não se efetivam apenas através de decisões governamentais. Elas são compartilhadas e naturalizadas entre boa parte da população brasileira. Por isso se aglomeram em busca de auxílios e de cestas básicas, foram convencidos e enxergam em si mesmos as banais (des)humanidades. Cenários de violência e desigualdade compartilhados entre uma extensa população empobrecida que está continuamente vulnerável aos regimes de naturalização da morte.

É fundamental que tais naturalizações sejam denunciadas, que nos atentemos a elas. Pois são fundamentais na consolidação do que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. Aproximando ao nosso cenário: a banalidade da morte. No Brasil, o número de mortos de mulheres, populações LGBTQI+ e negros há muito tempo tem proporções assustadoras e denunciadoras das políticas de extermínio. Todavia essa necropolítica foi banalizada e por isso teve seu enfrentamento publicamente dificultado com respaldo das mesmas naturalidades que reivindicam hoje o retorno de normalidades comerciais.

Parece-me que o risco que enfrentamos agora é de uma naturalização das mortes, uma vez que, meses depois, agora os historicamente tomados por inimigos é que estão morrendo. Em São Paulo, apesar da maior parte dos contaminados estarem nos distritos ricos e na periferia que está o maior numero de mortos[5].

Nos últimos dias, porcentagens que concentram os mortos entre grupos de risco dissimulam insinuações naturalizadoras. Agora em Abril, o estado com recorde de mortes no país[6], já começa a projetar, ainda que distante e gradual, reaberturas do comércio[7]. Pressões empresariais que há muito coordenam a necropolítica, parecem dar os primeiros passos para materialização de banalidades sobre as vítimas do COVID-19. O cenário requer atenção e disputa, pois podem tentar nos convencer de que as imagens de covas coletivas que assistimos nos últimos dias são normais.


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/informalidade-atinge-recorde-em-19-estados-e-no-df-diz-ibge.shtml

[2] https://varelanoticias.com.br/isolamento-aglomeracao-e-filas-marcam-buscas-por-cestas-basicas-em-piraja/
[3] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/22/humilhante-diz-gravida-apos-passar-a-noite-em-fila-de-agencia-da-receita-federal-no-rio.ghtml
[4] https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/04/21/moradores-de-salvador-formam-enorme-fila-em-supermercado-para-utilizar-vale-alimentacao-de-alunos-da-rede-estadual.ghtml
[6] https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/04/casos-coronavirus-sao-paulo/
[7] https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/04/21/brasil-tem-43079-casos-e-2741-mortes-por-covid-19-diz-ministrio-da-sade.ghtml
[8] https://exame.abril.com.br/brasil/covid-19-doria-detalha-como-sera-reabertura-gradual-de-sao-paulo/

 

 

 

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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