A região do Vale do Paraíba, Sul Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, foi historicamente ligada à produção de café. Memorialistas locais escreveram sobre fazendas, plantações e famílias importantes (geralmente escravocratas). A cidade de Barra Mansa está nesse circuito e Volta Redonda, que ao final dos anos 1930 possuía menos de 3.000 habitantes, era seu distrito rural. Tudo muda nos anos 1940, pois o governo Vargas, no contexto da Segunda Guerra, em associação com o capital estadunidense constrói a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).
O período de construção da usina (1941-1946) envolveu um processo de migração tamanho que mais de 48.000 trabalhadores chegaram à região. Na década de 1950 a população local cresce, chegando a 56.380 habitantes e em 1954, Volta Redonda se emancipa de Barra Mansa. Nesse cenário, a CSN já era um complexo fabril presente em vários estados.
Quando iniciei minha pesquisa de mestrado (2008), eu procurava os trabalhadores de Volta Redonda e a ação desses personagens como atores em três frentes: trabalhador, morador e eleitor. A ideia era olhar a agência dos trabalhadores na transformação do espaço, de suas próprias trajetórias e na formatação da política local. Contudo, quando comecei a trabalhar também com as fotos da empresa como fontes, ficou nítido que aquilo que eu nomeava genericamente trabalhadores era composto por maioria de trabalhadores negros.
Fotos como a seguinte, que retratam uma cena de trabalho em Minas Gerais, demonstram o que estou abordando aqui. A CSN de Volta Redonda era a ponta de lança do complexo industrial que abrangia a exploração de minério de ferro em Minas, de carvão mineral em Santa Catarina, de escritórios no Rio e São Paulo, além de Nova York. Volta Redonda era vendida como uma refundação do país pautada na formação de uma classe trabalhadora nacional, símbolo de modernidade e transformação social.
Flávio Gomes e Marcelo Paixão desenvolvem a hipótese de que o discurso de democracia racial em muito se validou no que chamamos de período desenvolvimentista. A modernidade seria o norte a ser seguido e ideias de “afrodescendentes com seus dramas sociais” não caberiam no novo projeto. Muitos de nós historiadores e cientistas sociais caímos no canto da sereia desenvolvimentista (tanto varguista quanto do período da Ditadura Militar) ao estudarmos o pós-abolição em ambientes fabris no Brasil. Por quê? Por exemplo, sobre Volta Redonda, talvez o primeiro estudo acadêmico sobre questão racial é uma dissertação de 2012.
Acadêmicos negligenciaram a questão racial enquanto a CSN se utilizava de uma divisão racial e social do trabalho. As razões podem ter variado, mas acredito que possuem um elo comum: o fato da discriminação racial se constituir em um segredo público no Brasil, ou seja, todos nós sabemos que a discriminação existe, mas ela dificilmente é admitida, mesmo quando expressa publicamente. É do processo de construção deste “segredo público” que geramos um imaginário de cegueira pública, pois olhamos e não vemos. Quando penso sobre a falta de estudos acadêmicos com a temática racial sobre Volta Redonda é essa cegueira sobre raça/cor que me assusta.
Por trás da “modernidade”, do discurso de paz social feito pelo governo Vargas e de um ideal de classe trabalhadora, os trabalhadores negros, em sua maioria migrantes, vivenciavam uma continuidade da herança das desvantagens. Eram incluídos no discurso e na estrutura assistencialista para os trabalhadores e permaneciam sob a condição de trabalho pesado com limitada mobilidade social. Casos que podemos ver tanto na primeira foto, quando homens negros, descalços e em trabalho braçal atuam em prol do desenvolvimento, quanto 6 anos depois, quando registraram favelas em Volta Redonda, pois sempre há personagens negros no primeiro plano da foto e/ou mais ao fundo.
Uma das questões mais problemáticas para o pós-abolição é a dificuldade de acesso aos registros raciais. Aparentemente, a CSN não os possui, no entanto, um dos poucos pesquisadores que conseguiram acesso aos registros de funcionários da empresa (Oliver Dinius) conseguiu aferir alguma coisa. Com a ficha cadastral de cada trabalhador de 1941-1946, ele classificou racialmente cada um dos empregados. Esse estudo faz parte da sua tese. Segundo Dinius, de 1941 a 1946, 69% dos trabalhadores envolvidos com a construção da CSN eram negros e entre os não especializados (mão de obra sem qualificação) eram 73,6%. O estado que mais cedeu trabalhadores para a obra foi Minas Gerais e 83% dos mineiros que vieram para Volta Redonda eram negros. Dinius registrou inclusive a percepção equivocada de que havia grande quantidade de baianos em Volta Redonda. O “trem dos Baianos” era assim chamado pela cor da pele das pessoas que por ele chegavam, contudo esse trem trazia majoritariamente mineiros.
As fotos da década de 1950 demonstram a fixação desses trabalhadores na região. A divisão espacial da cidade que surgida ao redor da usina refletia uma divisão social e racial do trabalho, assim como os clubes e locais de interação e sociabilidades entre os trabalhadores. Havia bairros e clubes específicos para engenheiros, trabalhadores técnicos (manutenção) e trabalhadores braçais. A foto a seguir, de 1955, assim como os dados de Dinius, evidenciam a maioria de trabalhadores negros.
A próxima foto é do Hotel Bela Vista, que sempre foi local da alta classe social de Volta Redonda. Recebia de engenheiros estadunidenses à direção e alto escalão da empresa. Como se observa, os negros estão na foto, mas no papel de músicos, não de foliões. As duas imagens trazem novamente reflexões sobre a relação de construção baseada em raça e classe.
O periódico da empresa, chamado O Lingote, possuiu seção intitulada “Conheça seu colega de trabalho” (1953 a 1957). Eram apresentados de 3 a 4 pessoas por edição, havia foto e uma história pessoal de sucesso, segundo os critérios da empresa. O periódico utilizava das histórias para a construção de um discurso/ideal de “família siderúrgica” e de irmandade/igualdade entre os trabalhadores. A partir da classificação racial dos operários e operárias presentes no periódico, localizei alguns dados.
Foram 369 casos analisados, 193 pessoas brancas (52,3%), 142 pessoas negras (38,5%, sendo 10,6% de pessoas pretas e 27,9% de pardas) e 34 pessoas que pela qualidade e ângulo da foto classifiquei como “não identificado” (racialmente). Olhando as mulheres há menor número ainda (brancas = 6,7%, pretas = 2,6% e pardas = 1,9%). Se, pelos dados de Dinius, teríamos 69% de trabalhadores negros (entre 1941-1946), o fato de termos apenas 38,5% deles no periódico nos dá indício de que ou eles não obtiveram sucesso (como o propagandeado pela empresa) ou a empresa fez escolhas de publicação que evidenciavam pessoas brancas.
Tentando sair da especulação e apresentar análise mais qualitativa, passemos aos cargos de chefia e subchefia. Os cargos de chefia para os trabalhadores negros ocorreram nas regiões de mineração, Minas Gerais e Santa Catarina. A única mulher preta que se encontra nos registros como chefe foi Dona Normélia de Souza Martins, chefe de cozinha na Casa de Hóspedes de Tubarão (SC). Às mulheres brancas (2) eram reservados cargos de assistentes sociais. No geral, os relatos se parecem com o de Antônio Paulino: “Todas as tarefas eram de natureza pesada, mas delas Antônio Paulino se desincumbia satisfatoriamente, pois sempre teve muito ânimo e energia […], servido por ótimas condições físicas”. Há, aliás, uma foto da “recompensa” de Antônio, em sua nova função: “encarregado do serviço de limpeza e zeladoria”. Sempre há um enaltecer da força física para os trabalhadores negros. A potência física é marca, como o caso de Expedito Teixeira de Souza, apelidado de “guindaste”, que tinha absurda força muscular (O Lingote, 10.9.1954, p. 3). Fica a curiosidade de quanto dessa construção de força e disposição adentrou o discurso trabalhista. Caberia o trabalhismo negro?
Os estranhamentos iniciais da pesquisa se deram pela foto, consegui um periódico e consegui juntar às imagens análises pautadas nos textos que a própria empresa fez, mas faltava uma questão, ouvir os trabalhadores negros e não negros.
No começo os trabalhadores negros entrevistados resistiram em denunciar o racismo dentro da fábrica, falavam mais da situação dos clubes e do espaço extra fabril. Jovacy Milheiro apontou que foi expulso do Clube Náutico por ser negro, o mesmo relatou Dona Maria do Rosário. Penso que, ao evitar relatar o racismo no ambiente fabril, havia uma certa sensação de pertencimento à classe trabalhadora, assim como a construção do discurso do Estado convidava ao abandono da construção raça/cor. Dessa maneira, denunciar o racismo poderia ser se colocar fora da classe e não reconhecer os benefícios que a fábrica trouxe. Afinal, foi através dela que muitos deles mudaram suas trajetórias.
Com o processo de aproximação via entrevistas, porém, a coisa fluiu e um dia o senhor José Garcia disparou: “lugar do negro era no calor do fogo, tá?”, dentro da empresa. O senhor João Laureano citou o caso de tentar uma vaga de chefe de turno: “Vou te dar a vaga não, por que você não faz engenharia?”. Segundo João, o chefe não quis falar “Porque você é negro… ser chefe de turno?”. O mesmo ocorreu com Geraldo Orozimbo, preto que quando chega à Volta Redonda em 1956, arruma emprego na cozinha da empresa, mas escutava gritos para seu chefe: “esse aí deveria ir para a Coqueria!”. Ronaldo Gori, branco e engenheiro, corrobora com esse argumento que tantos negros ouviram. Segundo ele, aprendeu na faculdade que na Alemanha “usavam muito o negro pra trabalhar na coqueria”. Ao perguntar ao professor o porquê, ouviu “o cara não podia reclamar depois. Que ele já tinha a doença”.
A Coqueria é onde os alto-fornos transformam o carvão mineral em coque, da reação química surge o gás benzeno que é um gás tóxico. Em 1987, o benzenismo ou benzolismo foi reconhecido como Doença de Trabalho pelo Ministério do Trabalho. Muitos dos trabalhadores da CSN não receberam indenização antes dessa data e mesmo posteriormente a empresa alegava que eles possuíam anemia falciforme, o que para ela era uma questão genética de raça. Segundo o Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda (SMVR), via jornal Maioria Falante (abril-maio, 1991, p. 10), eram mais de 2.000 casos na CSN com cerca de 500 afastados pela impossibilidade de trabalhar.
Toda história narrada até aqui vai ao encontro de que com o desmonte da estrutura para a classe trabalhadora, os primeiros a sentir a agudização de sua insegurança estrutural foram os trabalhadores negros. Já a sentiam na precarização de moradia, na negativa de entrada dos clubes da própria empresa e na divisão racial do trabalho. Ao longo das décadas de 1940 a 1980, a marca dos trabalhadores negros na empresa e na cidade foi uma inclusão excludente em que o discurso de democracia racial atuou como verniz e sereia que encantou e encanta muita gente.
Assista ao vídeo do historiador Leonardo Ângelo no Acervo Cultne:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF03HI12 (Comparar as relações de trabalho e lazer do presente com as de outros tempos e espaços, analisando mudanças e permanências); EF09HI07 (Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes); e EF09HI01 (Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil).
Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país)
Doutor e mestre pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); E-mail: [email protected]; Instagram @leoangelo.prof