Quando era criança, o mês de maio era celebrado como o “mês das pessoas negras”, por causa da assinatura da Lei Áurea. Com o fortalecimento e ampliação do movimento negro, o mês de novembro passou a concentrar as demandas de luta e cada vez se fala menos na “abolição da escravatura”. Esse foi um dos primeiros pensamentos que me ocorreu ao ver que na edição de maio da revista Playboy brasileira, havia uma mulher negra na capa.
no Bia Cardoso no Biscate Social Clube
Ivi Pizzott é bailarina do “Domingão do Faustão”. A nona negra, em toda a história de quase 40 anos da revista no Brasil, a sair na capa. Meu pai assinou por anos a revista e, em minha memória, só consigo lembrar de Isabel Fillardis, num cenário de dunas.
As primeiras críticas que vi, falavam que não há nada de novo em ter uma mulher negra sexualizada na capa de uma revista. Não há empoderamento, não há representatividade. É fato que na mídia a mulher negra é ou hiperssexualizada ou invisibilizada, e nos contextos capitalistas o poder dificilmente muda de mão, mas me questionei: nos dias de hoje, essa capa da Playboy pode representar algo?
Se a Playboy existe, num mundo em que corpos femininos são comercializados para o prazer, especialmente masculino, o fato de termos apenas 9 negras num universo de mais de 400 edições da revista é a comprovação que os corpos dessas mulheres não servem nem mesmo para essas revistas, são cruelmente mais descartáveis.
Trago para a reflexão um texto, que considero clássico, de Charô Nunes: Deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata! A maioria dos elogios feitos as mulheres negras foca em seus atributos físicos opulentos, retirando-lhes humanidade, colocando-as no açougue, exatamente o trabalho de uma revista como a Playboy, que vende corpos femininos. Especialmente tendo uma capa que remete a etnicidade com os acessórios e exibe o cabelo de Ivi como uma grande coroa, temos a referência animalesca com a chamada que diz “solta suas feras”. Uma questão parece ser o espaço social que o racismo nega e que ainda mantem negras e negros acorrentados a representações legitimadas pela branquitude. O mesmo cabelo que na capa da Playboy é destaque e elemento componente da construção do desejo e apelo sexual, em outros é ridicularizado e tratado como abjeto. Não parece ser a mulher negra que decide como seu corpo lhe agrada mas a narrativa, as fotografias, os discursos externos que são feitos sobre esse corpo.
Porém, negras e negros também são pessoas que desejam, também são corpos desejantes, que muitas vezes gostariam de ver mulheres e homens negros lindos, gostosos, sedutores, todo mês em revistas que pudessem ser folheadas com prazer. A expressão da sexualidade acaba por ser mais um espaço a ser conquistado, um espaço em que negras e negros não precisem existir apenas para servir, apenas para ser a bunda do carnaval ou o maior pênis da festa gay.
Então, há essa luta pela liberdade dos corpos. A luta por uma estética que não seja eurocêntrica, exotificada, ridicularizada ou hostilizada. É preciso reconhecer que a objetificação do corpo das mulheres negras ocorre de formas diferentes a da mulher branca, portanto é preciso levar em consideração também outras formas de representação e vivência de sua sexualidade.
E há inúmeras perguntas que acompanham: o protagonismo individual de Ivi Pizzott pode significar ganhos dentro da teia capitalista, que vislumbra um poder também individual? Porque posar nua, ver-se nua numa revista famosa, traz novas formas de se olhar. Talvez seja também o sentimento que carrega a passista nua da escola de samba, que tem no momento do desfile o seu auge individual. Coletivamente, para as mulheres negras não há mudanças, mas individualmente pode haver significados diversos? E caso sim, como acolhermos e legitimarmos os desejos e ações individuais sem perder de vista os compromissos coletivos de transformação da realidade?
É uma capa da Playboy, mas é bom que até isso seja o catalisador de novas perguntas sobre o protagonismo das mulheres negras.
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