Uma reflexão sobre empregadas domésticas na pandemia

A medida mais eficaz contra o Covid-19 é ficar em casa, o que parece simples para alguns, mas, para outros, não. Profissionais como atendentes de caixa de supermercado, balconistas de farmácia, garis, médicos, enfermeiros entre outros continuam trabalhando normalmente durante a pandemia, por uma razão compreensível: atuam em setores essenciais de atendimento às necessidades básicas da população, como alimentação, saúde etc.

Entretanto, venho chamar a atenção sobre um grupo de profissionais que não atua em áreas prioritárias neste momento e, que, portanto, deveriam ser liberados/as para ficarem em suas casas cuidando e sendo cuidados. Estou falando das empregadas domésticas, que, em sua maioria, são mulheres negras e periféricas. Vocês pararam para pensar por que essas mulheres não foram liberadas? Se, principalmente as elites, que usufruem dos serviços das empregadas domésticas, estão em suas casas e nem sempre trabalhando de home office, e mesmo que estivessem, acredito que seriam perfeitamente capazes de preparar os seus alimentos, limpar suas casas, cuidar de seus filhos, organizar suas roupas e lavar as suas louças, pois são essas e outras atividades que essas mulheres exercem nas casas dessas famílias, ou seja, tarefas que podem ser facilmente transferíveis para outras pessoas. O ideal seria a própria família se responsabilizar por elas, o que não acontece, porque, no Brasil, a elite sente prazer em ser servida, inclusive terceirizar o afeto, que até isso essas mulheres são responsáveis em dar aos/às filhos/as dos/as patrões/oas.

Essa incapacidade da elite brasileira de se responsabilizar por sua vida doméstica  vem de longe, e não é porque são pessoas solidárias, que geram empregos (mal remunerados e em condições precarizadas) para quem não foi permitido o acesso à educação, como é a realidade da maior parte dessas mulheres. E, para entender o porquê essas famílias nem em uma pandemia dispensam os serviços das empregadas, devemos voltar um pouco à história do Brasil, mais precisamente no período abolição e pós-abolição, e observar a relação que a elite brasileira estabeleceu com o trabalho doméstico, bem como com as mulheres negras, que eram obrigadas a realizá-los em troca de um prato de comida, que, muitas vezes, estava estragada.

Em artigo publicado no livro Mulheres Negras no Brasil Escravista e do Pós-Emancipação, a historiadora de gênero Camillia Cowlling mostra um aspecto fundamental do comportamento da elite brasileira, referente ao trabalho doméstico. Sendo possível relacionar com a situação atual provocada pela Covid-19. A professora Cowlling apresenta, em sua pesquisa, que,  logo que a elite brasileira da época, percebeu que a abolição da escravatura era uma realidade, entrou em desespero. Foi instaurado o pânico total, a casa grande estava caindo, e não poderiam deixar isso acontecer. O fato é que estavam preocupados/as com o trabalho doméstico, pois, com a suposta liberdade da população negra escravizada,  perguntavam-se quem ia executar esse tipo de serviço em suas casas. Podem acreditar, não pensem que estavam preocupados/as com um projeto político educacional para inserir essa população na sociedade. Nunca estiveram! Queriam saber quem, agora, iria limpar a privada, preparar a comida e cuidar de seus/suas herdeiros. Nas palavras de Cowlling “[…] as elites estavam ansiosas sobre o serviço doméstico após abolição, empregando noções racistas “científicas” da época sobre a vadiagem de ex-escravos em geral, e especialmente da “contaminação” social e moral representada pela ideia de mulheres negras que amamentava, crianças brancas e serviam no “seio “ de famílias brancas.” 

O trabalho doméstico neste país foi, e ainda é, feito por mulheres que têm cor e lugar social demarcados pela elite branca desde a fundação do Brasil, porque assim se consolidou o projeto escravocrata no país e assim ele persiste, com muita resistência por parte da elite em pensar as consequências de um projeto político que massacra corpos negros e todo seu significado ancestral. A elite brasileira nunca pôde se responsabilizar pelo trabalho dentro de suas próprias casas e, portanto, nunca perdoou a abolição, que, embora tenha se mantido a mesma estrutura e mentalidade a respeito dessas mulheres, não queriam pagar por um serviço que antes era feito de graça. 

Isso mostra que a elite brasileira estava pouco interessada com a emancipação dessas pessoas, mas muito preocupada em buscar estratégias para manter o trabalho escravo em suas casas. Por isso, não é de estranhar que hoje, no meio de uma situação de saúde que é global, as elites pouco se importam com as orientações da Organização Mundial da Saúde, no que se refere à saúde dessas mulheres, porque entendem que a condição dessas pessoas é de servi-los, não importando o contexto, mesmo que o preço seja a vida dessas mulheres. 

 

Referência Bibliográfica 

O Fundo de Emancipação “Livro de Ouro” E as mulheres escravizadas: gênero, abolição e os significados da liberdade na corte, anos 1880. Cowlling. Camila – livro Mulheres Negras no Brasil Escravista e do Pós-Emancipação. 

 

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*Juliane Sousa – Formada em Letras pela UNIFESP, jornalista, ambientalista, apresentadora de TV, roteirista e uma das responsáveis pelo projeto Mulheres Negras na Biblioteca. Uma pisciana Paranhense apaixonada por música brega, carimbó e reggae .

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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