Uma verdadeira frente por equidade racial

FONTEPor Hélio Santos, enviado para o Portal Geledés
Hélio Santos (Arquivo Pessoal)

Em meados de 1996, participei de um artigo publicado na Folha de São Paulo, em que 3 articulistas diferentes deviam responder à pergunta: “O preconceito contra minorias deve ser enfrentado com políticas compensatórias (ações afirmativas)?” Àquela época nós negros éramos 43% da população, daí a expressão “minorias”! Três tipos de respostas eram possíveis: “Não”, “Em termos” e “Sim”.

Um cardeal da direita jurídica do país, ao explicitar o seu “Não”, falava da isonomia cega que ainda hoje povoa algumas caducas cabeças, que, aliás, era também a posição do jornal. Já um ícone, respeitado e respeitável, da esquerda optou pelo “Em termos”. Confesso que foi uma posição boa a dele, porque diversas figuras da esquerda eram contrárias às cotas raciais nos anos 90. Para dar o meu “positivamente Sim”, precisei desconstruir o sofisma que buscava tratar de forma igual pessoas atávica e secularmente diferentes. Disse mais: nós negros buscávamos “criar uma sociedade democrática substantiva e não teórica”. Em 2012, 16 anos depois desse artigo, o STF, por unanimidade, para afirmar a constitucionalidade das cotas raciais, alegou algo semelhante. Para minha absoluta honra, hoje, 24 anos depois, o Movimento Social Negro, unificado pela unidade exemplar da COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS, popularizou o jargão: “Não há Democracia com Racismo”. Trata-se da “democracia substantiva” a que me referi e pela qual ainda lutamos. A força dessa verdade tornou-se um mantra revelador daquilo que impede que sejamos, de fato, uma democracia. Essa afirmação segura foi quem alentou a sociedade brasileira em operar em conjunto contra a inercialidade sistêmica do racismo brasileiro.

A COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS
É a partir dai, da criação da coalizão em 2019, que eu percebo a emergência de uma frente antirracista indignada que vem sendo formada com uma aparente espontaneidade, mas sempre com o protagonismo do ativismo negro. Parte da sociedade percebeu que não se trata só do cotidiano onde o racismo flui, mas de algo mais amplo, que exige medidas capazes de mover a estrutura que molda a forma do país funcionar e que se dá a partir do racismo inercial e sistêmico. Como frente inclui toda a sociedade: formadores de opinião, comunicadores, artistas, empresários, intelectuais, gestores do 3º setor, o mundo político-partidário, entidades de classe e líderes comunitários, além, é claro, do ativismo negro que vive um bom momento de unidade.

MODERNIZAÇÃO REGENERADORA
Como preciso sintetizar; eu diria que essa frente vem para radicalizar numa modernização regeneradora. Essa iniciativa pode vir a ser o remédio para uma sociedade que finalmente começa a se assumir doente. Percebe mais: não há futuro plausível sem essa cura. Daí a necessidade da radicalização, que é uma terapia que a medicina recomenda para curar doenças graves.

Ao fim, o que eu chamo de “modernização regeneradora” levam-nos à equidade racial – experiência que nenhum governo ou partido chamou para si até hoje de forma a quebrar a inercia do racismo brasileiro que flui moendo a cidadania negra.

BRASIL: O MAIS DESIGUAL DO MUNDO
Essa frente ampla antirracista que a coalizão vem inspirando há que reconhecer o fracasso exibido pela assimetria bizarra demonstrada pelo banco mundial: por um lado, estamos no rol dos 10 países mais ricos. Caímos, mas ainda temos a 9º posição. Estamos juntos com EUA, China, Alemanha, Japão, França e outros; e por outro lado, fazemos parte do rol dos países mais desiguais do mundo. Nesse grupo estamos juntos com a África do Sul, Zâmbia, Lesoto, Moçambique, Namíbia, e nos posicionamos atrás de Botsuana em 7º lugar. Ninguém há de nos tirar o galardão de sermos o país mais desigual do mundo. Explico: daqui há 2 anos o Brasil completará o bicentenário de sua independência, a África do Sul que aparece como o mais desigual, conquistou sua autonomia há apenas 25 anos e outros países, como Moçambique, ainda não completou meio século de libertação do colonialismo.

A explicação para essa assimetria é simples: Dentre os 10 mais ricos, somos o único de maioria negra. A desigualdade tem cor e história e no atual governo caminha para uma posição aguda como revelaram estudos recentes do DIEESE e IBGE.

O MEDO DO BRASIL PROFUNDO
Batalhar numa frente ampla antirracista significa perder o medo do Brasil profundo. Radicalizar por uma modernização regeneradora é reconhecer que sempre houve aqui um fastio empreendedor. Sempre foi preciso o investimento público. O setor privado não dá conta. O fastio decorre da insegurança proveniente do medo do Brasil profundo. Esse medo é retroalimentado pela ausência de equidade racial. Por isso, sempre acreditei que a população negra jamais foi o problema, mas sim parte definitiva da solução do não-desenvolvimento do País.

A COVID 19 AVASSALANDO A POPULAÇÃO NEGRA
A COVID 19 escancarou 3 óbices estruturais que são legítimas heranças do 14 de maio de 1888: o 1º, é o caos urbano-habitacional de um país com mais de 6300 favelas, que eu prefiro denominar comunidades esquecidas pelo estado. Temos ainda a metade das residências sem esgotamento sanitário, cerca de 100 milhões de brasileiros sem essa tão preliminar condição de saúde pública. O 2º, é o da informalidade avassaladora com 40 milhões de trabalhadores – quase uma Argentina! E o 3º, são os 800 mil encarcerados. Perdemos apenas para EUA e China, superamos Rússia e Índia. Nos revelamos um país muito mais eficiente para punir do que para propiciar igualdade de oportunidades, o que vem a ser a equidade.

Para muitos, o tamanho desses óbices é um beco sem saída. O ideal neoliberalista colide de frente com o que eu denomino “modernização regeneradora”. Todos devem trabalhar para romper com essa mácula secular, mas é ao estado moderno, eficaz e não corrupto, que cabe exorcizar esse ogro tão antigo quanto o país.

Aqui, a ideia de segurança nacional, atribuição do estado moderno, que na versão anacrônica militar foi motivo de golpes, não vislumbra o ovo da serpente que vem sendo chocado com zelo ibérico nesse país continental. Essa frente autêntica deve ter coragem e ousadia para propor e agir. O tamanho e a agudeza de nossa desigualdade é um fator desestabilizante. Se há um inimigo a ser combatido sem trégua é a desigualdade. O constituinte de 1988 foi sábio ao considerar a igualdade como pressuposto para a cidadania nacional.

Tolerância zero para a violência racial. Propor o fim da milícia terceirizada. Ela oprime de forma sistemática à toda população negra. Pobres, classe média e eventuais negros bem-sucedidos. As empresas – bancos, shoppings e supermercados – não podem continuar a terceirizar suas responsabilidades. Fechar definitivamente a torneira do infanticídio à bala que ceifa de forma cruel vidas das crianças negras nas comunidades esquecidas. Há uma espécie de anestesia moral da sociedade por não exigir dos governadores uma mudança para algo tão intolerável: o reiterado assassínio desses inocentes.

EQUIDADE RACIAL
Faz sentido uma movimentação como essa irromper num governo que é a antítese perfeita do que estamos falando. A 3ª lei de Newton – a da ação e reação – serve não apenas à física, mas às vezes é absolutamente funcional para as relações humanas. Não se vê nenhuma proposta para 2022 que caminhe na direção que essa frente sinaliza.

Segundo Darcy Ribeiro, a população negra escravizada, pelo trabalho, civilizou o Brasil. De fato, o escravismo colocou o País na órbita do comércio mundial pela produção de commodities como o açúcar, o ouro e o café.

Agora, devemos civilizar de novo. Dessa feita pela instauração da equidade. Equidade ampla e irrestrita que cauteriza as desigualdades – mal maior que nos trás o não-desenvolvimento. Mais uma vez uma movimentação negra se estenderá a todos, como aconteceu com as cotas raciais nas universidades que foram estendidas aos brancos (cotas sociais) que vinham da escola pública.

A síntese dessa frente modernizadora e regeneradora é a equidade em que a intersecção de raça e gênero são vetores que concretizam nossa sustentabilidade econômica, social e moral. A equidade racial é o antídoto para a anomia em que sempre estivemos imersos. Trata-se de um golpe mortal numa saga de meio milênio de duração.

Uma frente com este perfil não pode vir para livrar a cara de corporações racistas, mas precisa ter seu rumo pontuado por quem historicamente empunha essa bandeira por muito tempo solitariamente: o movimento social negro brasileiro, hoje unificado na COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS, que conquistou essa posição – mais de 170 organizações – ao enfrentar a antítese de tudo que foi dito aqui, que é o governo de Jair Bolsonaro.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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