Fuzileiros passaram noite no quilombo Rio dos Macacos, diz líder local.
Marinha nega. Órgão militar pede retomada de posse; comunidade resiste.
Por: Tatiana Maria Dourado
Um representante da comunidade quilombola “Rio dos Macacos”, território disputado judicialmente pela Marinha, afirma que fuzileiros militares passaram a madrugada desta terça-feira (29) nas imediações da ocupação, mesmo depois do acordo de retirada firmado na noite de segunda-feira (28), feito por membros do governo e da Justiça. Na ocasião, houve mais um conflito entre remanescentes de quilombolas e a Marinha do Brasil, que adentrou o local para impedir a reconstrução de uma casa de barro que havia sido destruída pela chuva nos últimos dias.
“Passamos a noite toda vigiados. Hoje já entrou um camburão. Na madrugada, passaram em frente à casa de meu irmão. Estão dentro do mato. A gente não sabe se vai sair vivo ou morto. Vivemos em guerra, a escola das crianças é arma na cabeça. Tenho muitas balas aqui que guardei”, diz a líder comunitária Rosimeire Silva dos Santos, mãe de quatro filhas. Segundo conta, os militares que cercaram o quilombo utilizaram violência, prática que denuncia ser constante.
“Chegaram com fuzis, metralhadoras e duas caixas de granadas, pelo que viram e me disseram, porque não entendo de arma. Nossos filhos, que correram para abraçar a gente, eles empurraram. Apontaram a arma [contra a criança], mas depois mandaram se retirar. Pisaram em uma senhora, colocaram arma na barriga de minha irmã”, afirma Rosimeire. A Marinha do Brasil nega a versão de que fuzileiros navais tenham estado “dentro” da comunidade no período da madrugada. Afirma ainda que é comum o trânsito de militares armados por se tratar de área militar.
O impasse atual será mediado pelas defensorias públicas estadual e federal, além de representantes da Secretaria de Promoção e Igualdade Racial (Sepromi) em reunião marcada para as 14h desta terça-feira. A defensora estadual, Fabiana Almeida, explica que o objetivo do encontro é definir alternativa para a crise imediata acerca da construção das casas. “Existe ordem judicial que proíbe construção e demolição de casas. Só que moradias foram destruídas por conta da chuva e as pessoas precisam se abrigar”, justifica. Até o momento, está acertada a suspensão das construções por 48 horas, prazo que encerra na noite de quarta-feira (30).
Há registro de que mais de 200 famílias moram no local, ocupadas pelos quilombolas há cerca de 230 anos. A área é alvo de Ação Reivindicatória, impetrada pela Marinha na 10ª Vara Federal Cível na Bahia, solicitando a reintegração de posse para fins militares. A execução da reintegração seria executada em março deste ano, mas foi suspensa por ordem do governo federal. O órgão militar relata que a suspensão da ação ocorreu com o propósito de “assegurar a conclusão da articulação com as esferas e instâncias do governo responsáveis por uma retirada pacífica, com realocação segura dos réus”. Na ocasião, movimentos sociais afirmaram que a comunidade não teve defesa na ação.
Imbróglio federal
Responsável pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), órgão do governo estadual, Elias Sampaio afirma que o papel da pasta é pressionar as instâncias federais para a resolução do conflito, que admite ser complexo. “O governo estadual atua como facilitador para mitigar possíveis problemas. Não conseguiram até hoje, por exemplo, fazer a Marinha sentar em uma junta de conciliação com a comunidade. Na minha opinião, os órgãos têm que se entender [referindo-se à Marinha, Fundação Palmares, Incra e Seppir, junto à AGU (Advocacia Geral da União), que responde judicialmente por todos]”, diz.
O secretário, que esteve presente no momento do conflito na noite de segunda-feira, diz que, na prática, não pode “satanizar” nenhuma das partes. “O conflito é sério e delicado. Cada um apresenta o seu argumento. A ação [de reintegração de posse, impetrada em 2009] é suspensa desde dezembro de 2010. Então tem algo que não está claro”, afirma. Segundo ele, a ação processual da Marinha é anterior ao próprio reconhecimento da comunidade como quilombola, só ocorrida em outubro do ano passado pela Fundação Cultural Palmares.
Elias Sampaio admite as condições subumanas à qual são submetidas a população quilombola, mas ressalta que serviços como água e energia, ausentes há décadas no local, só podem ser permitidas pelo órgão militar, que tem a posse formal da terra. “Qualquer tipo de ação tem que ser autorizada pela Marinha, que alega que a área está subjúdice e, com isso, qualquer ação pode complexificar o problema”, revela.
Em relação à violação de direitos humanos, Elias Sampaio diz que as denúncias são remetidas para os órgãos competentes, mas nenhuma até agora foi provada. A população alega índice de mortalidade provocado por ação de coronéis e tenentes, e pela falta de energia, que, por exemplo, impediria cuidados domiciliares às pessoas que sofrem de doenças. Na Bahia, a Sepromi reconhece cerca de 400 comunidades de remanescentes quilombolas.
Antiga fazenda
Em março, Vilma Reis, presidente do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra da Bahia (CDCN-BA), explicou ao G1 que a área em que hoje vivem as famílias de quilombolas era fazenda há 238 anos. Segundo ela, em 1972 foram retiradas do local 57 famílias, época em que a Vila Naval foi construída. “Até hoje essas famílias expulsas estão encostadas no muro, porque nunca perderam o vínculo com a comunidade”, disse.
Vilma Reis retrata que a fazenda pertencia à família Martins, por décadas dona de grande parte do território do recôncavo baiano, mas que abdicou da propriedade de São Tomé de Paripe com a decadência do açúcar. “Foram se envolver em outras atividades, mas os quilombolas permaneceram no local. Se for lá, ainda vê os restos de fazenda, das correntes e de todo o material que servia para a tortura [dos escravos]. O laudo da Marinha mostra totalmente o contrário”, descreve.
Fonte: G1