Nota de apoio e preocupação diante da situação do Quilombo Rio dos Macacos (BA)

A ingerência contínua da Marinha caminha na contramão da história e configura-se como um atentado, cabendo a responsabilização interna e internacional do Estado brasileiro

1º/06/2012

Movimentos e organizações sociais

As organizações não-governamentais, movimentos sociais e assessorias que subscrevem esse documento vêm por meio deste demonstrar sua solidariedade à Comunidade Quilombola do Rio dos Macacos (BA), assim como, manifestar sua preocupação diante dos últimos fatos de ampla repercussão nacional e internacional que envolvem ameaças de violações de direitos em suas dimensões políticas, sociais, culturais, econômicas, ambientais e históricas.

A comunidade quilombola do Rio dos Macacos é uma comunidade negra rural, composta por cerca de quarenta famílias, que remonta mais de um século de existência em área do Recôncavo Baiano, região do estado onde desde o século XVII se instalaram os engenhos produtores de cana-de-açúcar. Atualmente, a comunidade encontra-se cravada no município de Simões Filho, região metropolitana da cidade de Salvador.

Os habitantes realizam suas atividades rurais como a pesca e o extrativismo de forma comunitária, utilizando áreas de uso comum e perpetuam, assim, a tradição cultural de viver dos seus antepassados, conforme o relato apresentado ao Ministério Público Federal pela anciã Maurícia Maria de Jesus(111 anos de idade) : “essa terra é dos tempos dos meus avós. Meu pai, Severiano dos Santos, já falecido, nasceu aqui em 1910 e teve vinte e dois filhos aqui. O pai dele, José Custódio Rebeca, também nasceu aqui.”

A Marinha do Brasil começou no início dos anos de 1970 a edificar as construções do que viriam a ser, futuramente, a Base Naval de Aratu, na zona suburbana do bairro de Paripe, Salvador. No início desta mesma década, a Marinha construiu a Barragem do Rio dos Macacos, que dividiu ao meio a comunidade quilombola.

Nesse momento é que são iniciadas as tentativas, por parte da Marinha, de expulsão das famílias. A administração militar passou, então, a impor diversas proibições, entre elas a de construir ou reformar suas casas, manter ou iniciar roças de subsistência, criar gado de pequeno ou grande porte, entrar e sair do território livremente, receber parentes e convidados, realizar reuniões ou se organizar politicamente, entre outros impedimentos.

Destaca-se que além da não titulação/regularização da área quilombola, as famílias não têm direito à água encanada, energia elétrica e saneamento básico. Além disso, o correio postal, documentos e cartas endereçadas aos moradores da comunidade passam por triagem da Marinha. São 04 (quatro) décadas de intenso tensionamento para que o conflito atinja dimensões insuportáveis, porém, a comunidade não esmoreceu.

No dia 28/05 do corrente ano, foi veiculada em diversas redes sociais mais uma situação de extrema violência contra a comunidade Rio dos Macacos, pois, a Marinha utilizando um grupo de fuzileiros fortemente armados invadiu o local para derrubar a casa de um morador que estava reerguendo uma parede danificada pelas chuvas do final de semana, a ação desastrosa atingiu uma criança e gerou novas tensões.

A situação poderia parecer apenas um fato corriqueiro diante de tantas outras tentativas de intimidações e direitos negados, porém, há indícios de que está em curso uma retaliação sistemática contra a comunidade em face do grau de articulação local, nacional e internacional que a comunidade vem conseguindo nos últimos anos, em especial a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal, a Associação de Advogados/as de Trabalhadores Rurais (AATR), a Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA) e outros.

Concorre para tal visibilidade a perspectiva de uma decisão na Justiça Federal que aponte uma solução para o conflito com a permanência da comunidade no local, assim como, uma visita programada para próxima segunda-feira (04/06), no qual estão confirmadas a participação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos/as Deputados/as, Procuradoria Geral da República, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, organizações e assessorias de apoio. Até o momento, estão agendadas uma visita à Comunidade, assim como, reuniões com o governo do estado da Bahia e com o secretário-geral da República.

O Estado brasileiro, através das suas instituições, deve proporcionar o cumprimento dos princípios, objetivos e leis que foram promulgados na Constituição Federal de 1988, assim como, em tratados, pactos e declarações internacionais. A Constituição reconhece a necessidade de titulação das áreas quilombolas em seu Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, compreende a necessidade e promove o reconhecimento cultural, social e histórico (material e imaterial) da contribuição dos afro-brasileiros para construção de uma sociedade plural (Artigos 215 e 216 da Constituição).

No campo do direito internacional, ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata do autorreconhecimento, uso do território e garantia para que as comunidades possam manter seus modos de vida, sejam elas comunidades indígenas, quilombolas e populações tradicionais.

No momento em que desafios no campo da regulamentação do processo de consulta prevista na Convenção 169 da OIT são discutidos e estimulados pelo próprio governo federal, através do Itamaraty e demais ministérios, assim como, persiste a batalha jurídica pela manutenção do Decreto 4.887/03 no Supremo Tribunal Federal, na qual dezenas de organizações de direitos humanos, associações quilombolas e outros movimentos se acostam ao processo na defesa do direitos quilombolas, a ingerência contínua da Marinha no quilombo do Rio dos Macacos caminha na contramão da história e configura-se como um atentado não apenas a essa comunidade quilombola, mas a todas as outras no Brasil e América Latina, cabendo a responsabilização interna e internacional do Estado brasileiro sobre qualquer situação na qual os agentes do Estado utilizem a força coercitiva para intimidação e negação de direitos.

Assinam esta nota:

Centro de Assessoria Popular Mariana Criola.

Centro de Referência em Direitos Humanos – UFPB.

Comissão Pastoral da Terra – Regional Nordeste 2.

Dignitatis – Assessoria Técnica Popular.

GT Combate ao Racismo Ambiental [1] da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Justiça Global.

Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.

Terra de Direitos.

Plataforma Dhesca Brasil.

 

 

Fonte: Correio do Brasil

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