Você é negra

FONTEPor Thaís dos Santos, enviado para o portal Geledés
NAPPY STUDIO

A primeira vez que ouvi que eu era negra foi de uma pessoa branca, ela me disse: você é negra. A primeira vez que entendi o racismo foi quando ao abrir o portão de acesso ao prédio que eu morava uma mulher branca me parou e me tratou como uma prestadora de serviço dela, serviço esse maioritariamente ocupado por mulheres negras. Eu respondi para ela: eu não sou funcionária, eu moro aqui. Ela não soube o que responder, virou as costas pra mim e eu já subi as escadas com lágrimas nos olhos e chorei por horas. Chorar doeu muito nesse dia. Eu, por ser negra da pele clara e ter o cabelo liso escovado na época, nunca achei que passaria por isso, mas sim, eu passei, chegando em casa, com as compras na mão e a chave do apartamento localizada numa Avenida, pago com o trabalho dos meus pais que sempre priorizaram a educação e a minha segurança e dos meus irmãos (meu irmão era graduando em Ciências da Computação, chefiava o setor de informática de uma rede de alimentos em atacado, minha irmã é psicológa pós graduada e caminha pra sua segunda graduação, agora em pedagogia). A primeira casa da nossa família foi um barraco no morro. Eu e meus irmãos sempre estudamos em escola pública. Meus pais ganhavam salário mínimo, o que não dá pra custear escola particular pra três crianças, apesar de ser o sonho deles.

Entender os privilégios por ser negra da pele clara ainda me davam algum conforto pela passabilidade que isso representava para mim, mas cedo ou tarde isso caía por terra em mais um episódio de racismo velado, mais um episódio de preterimento, mais um episódio de silenciamento, mais um episódio de solidão. Há dois anos eu assumi meus cabelos cacheados de volta, e não foi por causa de transição capilar como muita gente achou, eu nunca usei química no meu cabelo (alisantes e afins), eu cortei pra me ver de volta, sempre existiu em mim um lado que dizia “esse cabelo não é seu”, então no dia do meu aniversário eu quis saber como seria daqui pra frente, e foi a melhor coisa que eu fiz. Ser quem eu sou às vezes me custa noites em claro.

Cresci não gostando do meu corpo, pois entendia que garotas inteligentes eram magras e tinham traços finos como as parisienses dos filmes do Godard, passei a acreditar que eu não combinava com o meu corpo. Eu sempre sou elogiada pelas minhas curvas, mas nunca pelo conhecimento que eu tenho a passar. Um vez uma visita na minha casa perguntou se eu já tinha lido mesmo os livros na minha estante. Um dia eu citei Beckett perguntaram de onde eu sabia quem ele era. Tive o privilégio de tratar em terapia muitas feridas que o racismo e sua estrutura me causaram, mas muitas garotas que se tornaram mulheres crescem acreditando que tem algo errado com elas por serem o tempo todo objetificadas por possuírem esse ou aquele traço da sua raiz negra. Passei anos colocando a mão nos lábios pra sorrir, porque eles são grandes, são negros.

Sonhava em ser rica pra poder afilar meu nariz algum dia. Hoje mulheres ricas e brancas fazem cirurgia plástica para terem lábios como os meus. Cresci aprendendo que beleza era a que pertencia a minhas colegas populares na escola. As brancas. Sempre fui a pessoa maravilhosa, mas poucas vezes a escolhida. Caminhar anos e anos pensando em como se ajustar à uma sociedade estruturalmente racista é como vestir uma armadura a cada dia. Se a gente abaixar a cabeça, nós que lutemos ou a estrutura capitalista burguesa nos mata, nos fere, nos isola, nos suicida, nos amedronta, nos impede. A diferença é que a gente tem que lutar todos os dias, sem descanso. Todos os dias. A gente tem que lutar todos os dias. Nós, negrxs, temos que lutar todos os dias, independente se alguém vai escolher ou não nos ajudar. Há séculos, nós temos que lutar todos os dias.


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