Nosso amor preto sobreviveu aos navios negreiros: invoquemos!

Memórias de agruras regem as poucas páginas destinadas a contar uma única versão da nossa história. Escabrosidade é a síntese que o pensamento colonial impôs sobre as nossas múltiplas trajetórias. Não nos contaram narrativas afetivas e felizes sobre o que vivemos no passado. Isso nos dá a entender que somos só dor, sofrer e laborar. Onde estão as nossas histórias de amor? Não desejamos nunca o desejo? 

A teoria da procriação está para a vertente apostólica cristã. A reprodução social dos povos pretos sempre foram produto de resistência e manifestação da sacralidade dos afetos. Quem mais tem a nos ensinar sobre a fecundação do Amor reside nas profundezas das águas doces de mamãe Oxum. Ela, a deusa soberana do gestar afeto, cuidado, delicadeza e desejo. 

Não nos importemos com esse amor caricato e falocêntrico que chegou, feito invasão, em nós. Não precisamos de um tratado moral para nos dizer como sentir e desejar amor. Porque o amor que carregamos em nós, já foi fecundado e banhado, por nossas ancestrais, através do mais belo ensinamento – não codificado pela eugenia – de que amar é verbo. E ele se conjuga entre o sujeito singular e o plural. Ele alcança as raízes mais profundas de identificação das dores e opressões que a pessoa amada traz consigo. 

Um amor preto baseia-se no fortalecimento da ancestralidade. Dispa-se das dominações patriarcais. Reveste-se do que há de mais precioso nas joias de Oxum: o amor genuinamente ancestral. O de enxergar na outra pessoa negra, que se ama, o seu próprio reflexo. Se ver nela. E ela se ver em você. Tudo isso porque não há assimetria e poder na construção desse amor. Ele simplesmente flui, transborda, e corre seu próprio fluxo sem que haja aprisionamento. 

Nossos povos pretos, que resistiram bravamente ao aniquilamento dos navios negreiros, também souberam amar. Trouxeram para nós o amor preto, mesmo sobre as águas revoltas, e, aqui, fecundaram gestações de amor pretos possíveis. 

Invoquemo-nos, então, o amor enraizado dentro de nós. 


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