Vozes de todo o país se unem para cantar o samba paulista e negro de Geraldo Filme

Geraldo Filme (centro) e Plínio Marcos (abaixo), com Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde, em LP de 1974. CD (destaque) traz vozes femininas e negras para mostrar obra do compositor paulista

Sambista que dá voz aos negros e pobres de São Paulo tem obra reunida em CD duplo, só com cantoras negras, de várias gerações, e com show no Sesc

Por Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual

Geraldo Filme (centro) e Plínio Marcos (abaixo), com Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde, em LP de 1974. CD (destaque) traz vozes femininas e negras para mostrar obra do compositor paulista (Rede Brasil Atual /Divulgação)

São Paulo – Com 10 anos de idade, Geraldo não gostou de ouvir de seu pai, seu Sebastião, que o samba feito em São Paulo não tinha qualidade como no Rio de Janeiro. E resolveu responder – em forma de samba.

Eu sou paulista, gosto de samba
Na Barra Funda também tem gente bamba
Somos paulistas e sambamos p’ra cachorro
P’ra ser sambista não precisa ser do morro

Eu vou mostrar foi a primeira composição de Geraldo Filme, nascido em 1928 em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, mas formado nas rodas de samba da capital e em Pirapora do Bom Jesus, um dos “berços” do chamado samba paulista. Mas em sua obra ele também cantou a vida do povo pobre e negro, dos injustiçados e oprimidos, sua própria história, a origem africana.

A dor da chibata

“Geraldo Filme traz uma coisa mais profunda que o samba de São Paulo. Tem a batida negra. Está numa raiz profunda. Quando ele canta, também traz uma força muito grande. Você sente a chibata, a ferida nas costas. É um pouco como como os cantores de blues, dos campos de algodão no Mississipi. Traz uma marca”, diz o músico e escritor Leo Lama, que conheceu Geraldo ainda criança. Era um dos vários amigos que o pai de Leo, o dramaturgo Plínio Marcos, levava para casa.

“Eles comiam bastante”, brinca Leo, lembrando dos encontros caseiros, na Bela Vista, o popular bairro do Bexiga, onde moravam, perto da Vai-Vai, uma das mais tradicionais escolas de samba paulistanas, para a qual Geraldo compôs um samba-enredo em homenagem ao poeta Solano Trindade, vice-campeão do carnaval de 1976. “Meu pai era patrono de várias escolas, circulava no meio. Era uma coisa marcante”, conta Leo, recordando ainda das frequentes rodas de samba em um sítio da família.

Nem sempre conhecida, mesmo em São Paulo, a não ser por quem é do samba, a obra de Geraldo Filme ganha uma releitura com o lançamento de um CD duplo, com 20 de suas composições, cada uma cantada por uma mulher negra. Do selo Sesc, o álbum duplo Tio Gê – O samba paulista de Geraldo Filme será lançado com dois dias de show na unidade Belenzinho, na próxima sexta-feira (13) e no sábado (14), às 21h, com participação de Alaíde Costa, Amanda Maria, Ellen Oléria, Graça Cunha (na sexta), Áurea Martins, Fabiana Cozza, Luciah Helena e Virgínia Rosa (no dia seguinte).

Canções e textos

Além das 20 faixas, o disco traz textos escritos por Leo Lama e interpretados pelos atores, também negros, Aílton Graça, Sidney Santiago Kuanza e João Acaiabe. “Essas histórias que contei eu ouvia muito”, diz Leo. “O malandro de antigamente tinha muito mais a ver com elegância do que com alguém que passava os outros para trás. Quase um romântico, alguém que fazia malabarismo na vida, sabia driblar a vida. Só que isso foi se deteriorando e virando o tal jeitinho brasileiro.”

Um dos textos que acompanham o CD traz uma história curiosa, do tempo em que Geraldo teve uma lavanderia, uma de suas muitas ocupações, e ajudava os amigos do samba.

De samba não se podia viver, queriam que ele tirasse o diploma, que nada, o samba era sua vida. A lida era ganhar o pão do dia, depois de dar um beijo nos negrinhos, quem sabe carregar algumas malas lá na porta da estação, engraxar sapato, bota, carregar cesto na feira, alugar uma casaca, e se Deus quiser, ser garçom de gafieira. Vida de negro no Brasil. Teve um tempo em que Geraldo Filme, naquela época mais conhecido como “Corvão”, tinha uma lavanderia. E era ali que os sambistas como Toniquinho Batuqueiro iam se vestir para o fim de semana. Pegavam roupas emprestadas, iam pro samba e no domingo à noite levavam de volta. O Geraldão lavava e na segunda-feira devolvia limpinha pro dono. Sambista que se preza tem que estar elegante na malandragem.

A cidade cresce

São histórias dos tempos de outra São Paulo, de tiririca – um jogo de pernas que remete à capoeira, mas com características próprias –, dos encontros de sambistas no hoje inexistente Largo da Banana, na Barra Funda, nas imediações da rua Brigadeiro Galvão e da avenida Pacaembu, que desapareceu com a construção de um viaduto, no final dos anos 1950. Mudanças que Geraldo acompanhou, sempre com seu olhar social.

São Paulo, menino grande
Cresceu não pode mais parar
E o Pátio do Colégio quem lhe viu nascer
Um velho ipê parece chorar
Não vejo a sua mãe preta
Na rua com seu pregão
Cafezinho quentinho, sinhô,
Pipoca, pamonha e quentão

São Paulo Menino Grande, quinta faixa do CD, ganhou interpretação de Amanda Maria, cantora da nova geração. Eu Vou Mostrar, a terceira do disco, está na voz da veterana Leci Brandão. O diretor artístico do projeto, Fernando Cardoso, conta que a escolha do elenco teve a preocupação de buscar não apenas vozes paulistas. “Eu queria que o disco tivesse vozes nacionais, que a gente pudesse expandir a música do Geraldo. Que as cantoras pudessem traduzir sua personalidade artística em cada faixa. É uma maneira de iluminar a obra do Geraldo Filme com essa delicadeza e com as vozes femininas negras.”

A ordem das músicas também não é aleatória. Uma das primeiras é justamente Eu Vou Mostrar e a última é Reencarnação, em que o autor pede para voltar como sambista, com as crianças o chamando de Tio Gê.

Quero ser sambista
Ao renascer de novo
Pra cantar a alegria
E desventura de meu povo

Uma das canções mais conhecidas do sambista, Tradição (Vai no Bexiga Pra Ver), por exemplo, é interpretada pela carioquíssima Sandra de Sá. O disco traz ainda as vozes de Eliana Pittman, Teresa Cristina, Áurea Martins, Rosa Marya Colin, Fabiana Cozza, Maria Alcina, Paula Lima, Lady Zu, Alaíde Costa, Virgínia Rosa, entre outras.

Foi ouvindo Fabiana, por sinal, que o próprio Fernando Cardoso despertou para a obra de Geraldo Filme, anos atrás. “Não conhecia. Mas depois, quando eu fui pesquisar, descobri que não era exceção. Muita gente não conhecia e continua não conhecendo”, diz o produtor, que tempos atrás organizou um show inspirado no sambista paulista com Virgínia Rosa, de quem era empresário.

Sertanejo e urbano

Ele chama a atenção para a sonoridade (“Letras mais sertanejas e outra parte da obra muito urbana”) e o conteúdo das composições de Geraldo Filme, que também expõem a cultura negra e denunciam injustiças, a desigualdade, o racismo. Caso do Batuque de Pirapora, cantado por Virgínia no CD, ou Garoto de Pobre, com Teresa Cristina. “Você vê essa dor em várias músicas do Geraldo”, afirma o diretor.

Eu era menino
Mamãe disse: vamos embora
Você vai ser batizado
No samba de Pirapora
Mamãe fez uma promessa
Para me vestir de anjo
Me vestiu de azul-celeste
Na cabeça um arranjo
Ouviu-se a voz do festeiro
No meio da multidão
Menino preto não sai
Aqui nessa procissão
Mamãe, mulher decidida
Ao santo pediu pediu perdão
Jogou minha asa fora
Me levou pro barracão

Para Cardoso, a obra de Geraldo Filme ainda não foi registrada como deveria. “Não teve uma repercussão nacional. Ele é muito respeitado, estudado, mas no universo do samba e de São Paulo.” Para Leo Lama, essa dificuldade de inserção também se explica por uma certa característica nacional que ele identifica. “O Brasil não tem verdadeiramente interesse cultural pelas coisas. É um país imitador, mimético. O que os Estados Unidos fazem com as raízes do blues a gente não faz em relação ao samba. Nossa música é com certeza uma das melhores do mundo, com riqueza rítmica, melódica, mas a gente não sabe se valorizar.”

Leo lembra do disco que o pai fez com Geraldo Filme, ao lado de nomes como Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde, em 1974: Plínio Marcos em prosa e samba – Nas quebradas do mundaréu. Recorda, brincando, que quando mais jovem fez com um amigo dezenas de músicas inspiradas nos Beatles, que eram sua paixão. Mostrou para Plínio, que reprovou tudo e os despachou para a casa do implacável pesquisador José Ramos Tinhorão, pedindo: “Explica para eles”. Foi uma grande aula, diz Leo. “Tivemos a oportunidade de conhecer profundamente a música de vários lugares.”

Organização social

Outro texto incluído no CD fala de dona Augusta Geralda, mãe de Geraldo, que quando pequeno ia entregar marmitas que ela preparava. E conta que Augusta foi pioneira na organização das trabalhadoras domésticas, além do cordão, e depois escola, Paulistano da Glória. O Samba da Lata de Lixo é narrado por Sidney Santiago Kuanza:

A mulher negra sempre sustentou a família. De linhagem guerreira, engajada nos caminhos de libertação, Dona Augusta Geralda, mãe de Geraldo, Geraldinho, antes de ser dona de pensão, foi empregada doméstica e assim, acompanhou a senhora para quem trabalhava em uma viagem a Londres. Lá, para além de Rainhas e Big Bens, viu os movimentos sindicais. O destino está nos olhos de quem o enxerga. Voltou e fundou o sindicato das empregadas domésticas, que cheias de raça e fé formaram o cordão. Nascia assim o embrião da Escola de Samba Paulistano da Glória. Desse jeito Geraldinho foi sendo curtido, ali, onde tudo virava som, as palmas das mãos, as latas de lixo, as caixas de engraxar sapato, a pele do gato. Tudo acabava e começava em samba. Por isso mesmo, na Barra Funda, Geraldinho e seu melhor amigo, Zeca da Casa Verde, jogavam bola e enganavam o relógio no meio das rodas de batuque e capoeira. Sambista era aquele que perdia tempo. Era lá, no Largo da Banana, que os carregadores e os engraxates improvisavam batendo no Tambu. Porém, o que vinha dos negros era proibido e a polícia vira e mexe vinha querendo encarcerar aquelas almas jogadoras de tiririca. Mas o samba se guarda. A pensão da Dona Augusta Geralda ficava na Avenida Rio Branco e o garoto levou marmita até pro Governador Ademar de Barros. Mas ia sempre escoltado por dois soldados, que, sem molejo, desconfiavam que a gororoba pudesse estar envenenada. Malandro, logo Geraldinho sacou as diferenças: “Enquanto eles tocavam valsa vienense do lado de dentro, do lado de fora a gente tocava samba nas latas de lixo”, dizia.

Geraldo Filme morreu há 25 anos, em 5 de janeiro de 1995, aos 67 anos, após sofrer uma parada respiratória. Estava internado por causa de uma broncopneumonia, quadro que se agravou pela diabetes. Sempre é lembrado com um samba que ele mesmo compôs, em homenagem a outro sambista, Pato n´Água, apelido de Walter Gomes de Oliveira, lendário diretor de bateria da Vai-Vai, também ligado ao Corinthians.

Em 1969, depois de um dia de andanças por São Paulo, Pato n´Água foi encontrado morto em um lago de Suzano, na região metropolitana, e muitos acreditam ter sido vítima do Esquadrão da Morte. Consternado com o desaparecimento do amigo, Geraldo fez um samba que nasceu clássico, Silêncio no Bexiga.

Silêncio, o sambista está dormindo
Ele foi, mas foi sorrindo
A notícia chegou quando anoiteceu
Escolas, eu peço o silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
O apito de Pato n’Água emudeceu

Partiu, não tem placa de bronze, não fica na história
Sambista de rua morre sem glória
Depois de tanta alegria que ele nos deu
Assim, um fato repete de novo
Sambista de rua, artista do povo
E é mais um que foi sem dizer adeus

-+=
Sair da versão mobile