Em 2016, a pesquisa intitulada “A cara do cinema Nacional” realizada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, constatou a inexistência de mulheres negras diretoras e roteiristas no mercado cinematográfico brasileiro. Muito se fala sobre a (sub) representatividade de pessoas
Por Naomi Cary, enviado para o Portal Geledés
negras nas telas de cinema e televisão, como se esse resultado pouco tivesse a ver com a forma como nós, pessoas negras, somos afastadas do universo da produção audiovisual. Ou seja, se não estamos atrás das câmeras, muito dificilmente nossa imagem estará impressa nela – pelo menos como queremos e precisamos ser vistos.
Tal pesquisa, entretanto, foi considerada tendenciosa por grande parte dxs cineastas negrxs. Como afirmou a cineasta negra Camila de Moraes (diretora do documentário “O Caso do Homem Errado” – 2017), em entrevista à revista Galileu “O número (de cineastas negrxs) é muito maior, mas não nos contabilizam porque não estamos em salas do circuito comercial”. Viviane Ferreira (diretora do longa de ficção “Um dia com Jerusa” – 2018), no programa Entre Vistas questiona “A quem é interessante dizer que as mulheres negras não filmam neste país?”
20 anos após a publicação do Dogma Feijoada, ainda é necessário definir e refletir sobre o cinema negro. Afinal, do que estamos falando¿
Em 2000, o cineasta Jeferson De (diretor dos longas “Bróder” – 2011 e “O Amuleto” – 2015), em colaboração com outros realizadores negros, lançou, no 11º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o programa Dogma Feijoada – composto, além de outras atividades, pelo manifesto Gênese do Cinema Negro Brasileiro. Em referência ao Dogma 95 – criado pelos cineastas europeus Thomas Vinterberg e Lars Von Trier – que defendia a necessidade de produções mais realistas e menos comerciais, o Dogma Feijoada questionava o que entendíamos como cinema negro brasileiro.
Dentre as diretrizes e exigências de tal manifesto, ressalto as sete “regras” para a produção de um cinema negro (sistematizadas no texto de CARVALHO & DOMINGUES): (1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; (5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; (7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.
A partir dessas 7 regras, podemos compreender pelo que esses cineastas estão lutando. A maioria da população, ao pensar em cinema negro, é remetida a obras como Cidade de Deus, Cidade dos Homens, Orfeu Negro que, apesar de serem representativas, no sentido de colocar negrxs na frente das câmeras, nos objetifica, reforça estereótipos e simplesmente, apesar de plasticamente belos, deixam muito a desejar em termos de criatividade. Viviane Ferreira afirma: “Não tenho nenhum desconforto em dizer que não cabe uma pessoa branca fazer cinema negro. É conflitante, porque estamos falando de uma experiência que nenhum corpo branco vai conseguir traduzir, porque não lhe pertence. Todo mundo sabe que um personagem que não é construído sem a sua devida complexidade não é um bom personagem”
A mais recente afronta da branquitude foi produzir uma série sobre vida de Marielle Franco, que se tornara um mártir para a comunidade negra brasileira, com uma equipe branca: a criadora do projeto, Antonia Pellegrino, o roteirista chefe, George Moura e o diretor, José Padilha (diretor da série O mecanismo, que exalta Sérgio Moro e a operação Lava Jato). Como diz a cineasta Camila Moraes, “Nossa realidade é muito injusta. Pessoas com nome ganham recursos e mostram realidades que não são do Brasil.” Algozes de nossas histórias, sabemos que a branquitude capta nossas narrativas e as vende desonestamente. Pessoalmente, não duvido que será um trabalho bem executado mas, para quem ele será feito¿ Que olhos contarão essa história ¿ Que é a história do povo preto brasileiro. Quantas diretoras, roteiristas e produtoras negras não contariam essa história de uma forma mil vezes mais sensível e real¿ E mais, no prato de quem essa história colocará comida¿ Com certeza, não será no nosso.
Durante toda a História desse país, estamos morrendo de fome, durante toda a história do cinema brasileiro, estamos sendo mal representados e privados de nos reconhecer. Não há política de cotas no cinema, não há sequer reconhecimento de que estamos sim, produzindo, mesmo diante dos boicotes e adversidades, nossas próprias narrativas. São muitas as iniciativas de democratização do audiovisual. Eu mesma, comecei um curso técnico em uma instituição pública que – além de silenciar linguagens e narrativas fora do padrão hegemônico, portanto, branco (preconizava-se o cinema “periférico”, mais uma tentativa da branquitude de ditar o que e como devemos falar sobre nós mesmos) – ignorava a irremediável realidade: Ninguém, depois de concluído o curso, teria dinheiro para adquirir equipamento e que seríamos, portanto, no mercado de trabalho, facilmente ultrapassados por alunos de Jornalismo e Cinema de instituições que atendem, principalmente, a elite brasiliense.
Atualmente, o movimento “afrofuturista” – que pretende reinventar futuros, ou seja, imaginar e criar um futuro em que estejamos vivos, um passado em que somos mais do que vítimas observadoras e passivas e um presente em que estamos produzindo na direção de conectar esses dois extremos – têm propostas que muito se aproximam do que Jeferson De e os demais cineastas responsáveis pelo Dogma Feijoada propuseram há 20 anos.
*a escritora desse artigo é – ou quer ser – roteirista e cineasta negra e está lutando para produzir seu primeiro curta metragem. Para colaborar com essa ideia, você pode contribuir com o financiamento coletivo do curta “quando o rato ri do gato” e seguir a ig @curtaqrrg
Bibliografia
Viviane Ferreira para o “Entre vistas” da TVT 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?
Camila Moraes para a revista Galileu. Disponível em https://revistagalileu.globo.
CARVALHO, Noel dos Santos and DOMINGUES, Petrônio. DOGMA FEIJOADA A INVENÇÃO DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2018, vol.33, n.96, e339612. Epub Dec 07, 2017. ISSN 1806-9053. https://doi.org/10.17666/
A cara do cinema nacional. Disponível em http://gemaa.iesp.uerj.br/
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