Zara no Ceará: vendedores de outras lojas de varejo confirmam uso de código para ‘clientes suspeitos’

Enviado por / FontePor Vitor Tavares, da BBC

“Comparecer ao setor infantil”, “Vendedor X, corredor 8”, “Atenção, padrão”…. Recados como esses, à primeira vista rotineiros em alto-falantes ou entre vendedores de lojas de roupa, são muitas vezes um código para identificar um potencial “cliente suspeito” que precisa ser monitorado. É o que relatam funcionários que já trabalharam no comércio pelo Brasil.

E a identificação de quem é “suspeito”, segundo os relatos, se baseia no comportamento, modo de se vestir e também na cor da pele.

“Se entrava um menino negro, de boné e com roupas simples, já entra no radar da loja inteira, precisa ser acompanhado de perto”, contou à BBC News Brasil Luísa*, 24 anos, uma ex-funcionária de uma grande loja de roupa num shopping do Rio de Janeiro (RJ).

Situações como essas foram relatadas por diversas pessoas nas redes sociais em meio à revelação feita pela Polícia Civil do Ceará de que uma loja da rede Zara, num shopping de Fortaleza (CE), usaria um “código” para alertar a presença de clientes suspeitos na loja.

Testemunhas que trabalharam na loja teriam relatado à polícia que esse “código” é comunicado por meio da mensagem “Zara zerou”, toda vez que um cliente negro ou com roupas simplórias entrasse na loja. Em nota à BBC, a Zara negou as acusações e disse que não há qualquer “código interno” para discriminar clientes.

Mas pessoas com experiência no comércio dizem que o caso não surpreendeu e não se trata de atitude isolada. “Essa prática de usar códigos para identificar suspeitos é antiga e diria que até padrão nas lojas”, disse Cristina*, 35 anos, que trabalhou entre 2003 até 2006 em lojas de shoppings de Brasília (DF).

Os casos que chegam aos centros municipais de São Paulo que prestam atendimento às vítimas de discriminação racial também revelam que não são situações novas. “Essa história de códigos já existe há muitos anos É escancarada essa questão, de supermercados às grandes lojas”, diz Elisa Rodrigues, secretária-executiva da promoção de igualdade racial de São Paulo e que lida com o combate ao racismo há décadas.

Oferecer sacolas, anunciar produtos que não são vendidos…

A baiana Suzana*, de 29 anos, hoje estudante, teve sua primeira experiência profissional em 2011, numa grande varejista de roupas populares em um shopping de Salvador (BA).

Na loja, a recomendação desde o início era para ter cuidado com o grande movimento e prestar atenção com “pessoas estranhas”.

“A estratégia era, se identificar um comportamento ou alguém ‘estranho’, tinha que ir lá quebrar gelo. Oferecer uma sacola para colocar as roupas, oferecer o cartão da loja, ficar perto fingindo que está arrumando o setor”, conta. Ou seja, mostrar quem tem “alguém de olho” em você.

No Rio, Hélio*, de 30 anos, atuou em três lojas como fiscal de perdas e danos, justamente com o objetivo de reprimir furtos.

Ele defende que o uso de código é “normal”, com o objetivo de evitar maiores constrangimentos. “Muitas vezes quem está vendo as câmeras de segurança fala um nome de um funcionário que não existe, como ‘Gabriel, corredor 4’, isso quer dizer que tem alguém suspeito lá, disse.

“Mas isso não quer dizer que deve ser feita uma abordagem errada.”

Em Brasília, Cristina lembra que, em lojas menores onde trabalhou, a estratégia de comunicação entre os vendedores era anunciar um produto que não existia na loja. “A gente gritava pro estoque algo como “desce as meias”. Só que não vendíamos meias. Então sabíamos que era pra ficar de olho em alguém”.

Em grandes redes, onde há seguranças próprios das lojas, ex-funcionários relatam que há ainda uma comunicação intensa via rádio. “Tinha uma tabela de palavras pra gente comunicar, descrevendo a cor da pessoa suspeita, cor da roupa, cabelo”, relata Luísa, que ficava responsável pelo controle dos provadores numa grande loja no Rio.

Comportamento suspeito ou estereótipo racista?

Mas como são identificadas pessoas suspeitas?

Suzana, de Salvador, fala que já no treinamento para admissão há uma orientação para observar clientes que buscam peças sem detectores de alarme, que estão há muito tempo na loja e mexendo em bolsas grandes. Mas, diz ela, no fim há um grande julgamento sobre a aparência.

“É muito complicado, porque a sociedade cria esses estereótipos de pessoas simples, mal arrumadas, negras. Não deveria competir ao vendedor essa avaliação”.

Há 15 anos no mercado de lojas de padrão mais elevado num shopping em Belo Horizonte (MG), Carla*, 32 anos, conta “que são as pessoas humildes e pretas que chamam atenção de funcionários, porque ninguém suspeita de uma branca bem arrumada, que muitas vezes no fim é quem furta”.

“Se a gente ouvisse o nome de loja mais ‘compareça à sessão infantil’, tinha que largar tudo para acompanhar a tal pessoa suspeita. E, normalmente, era negra. Era uma decisão que partia de cada funcionário”.

Carla, que é negra, conta que ela própria já foi considerada suspeita enquanto cliente em outros estabelecimentos: “Fui a uma farmácia recentemente e fui seguida, fiquei tão nervosa que comprei a primeira base que tinha na mão pra ir embora. A gente conta essas situações no dia a dia e falam que é mentira, mimimi. Aí precisa de um escândalo assim para as pessoas acordarem”, opina.

O ex-fiscal de loja Hélio, também negro, defende que “todas as pessoas dentro de uma loja são observadas, mas realmente as pessoas que os funcionários mais prestam atenção são as com vestimentas mais simples, o que chamam de ‘roupa de bandido’, largadão”. Na opinião dele, o problema são os erros de abordagem. “Existe sim a questão de racismo, mas também há erros de funcionários que não tem experiência nisso de combater os furtos.”

A brasiliense Cristina conta que os vendedores têm muito receio de ter problemas em casos de furto, como ter valores descontados no salário. E, por isso, alimentam esse sistema de códigos e abordagem para se proteger de situações como essas.

“Mas essa proteção tem diversos mecanismos baseados no racismo. É um sistema que se retroalimenta, porque os trabalhadores ganham mal, querem proteger seu emprego e acabam pagando se ocorre um furto”.

‘Não se calar’

Algumas das grandes cidades brasileiras possuem serviços que prestam atendimento à população em casos de racismo no comércio. Em São Paulo, o Centro de Referência de Promoção da Igualdade Racial presta atendimento e orientação jurídica e psicológica às vítimas. Em Niterói (RJ), foi inaugurado recentemente Núcleo de Atendimento a Vítimas de Racismo.

“Tem que acreditar na justiça, não silenciar. As políticas públicas foram criadas para acolher pessoas negras. Muita gente fala ‘deixa pra lá, não vai dar em nada’, mas temos muitos exemplos de que dão resultado sim”, diz Elisa Rodrigues, secretária executiva da promoção de igualdade racial de São Paulo.

Em casos de discriminação racial, diz Rodrigues, é importantíssimo que haja testemunhas. Ou seja, se você presenciou algum caso de racismo, se solidarize e fique à disposição da vítima. Registros em vídeo e áudio também ajudam no combate a esse tipo de crime. “Mas se não tiver, tem que entrar com ação da mesma forma”, diz.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das pessoas entrevistadas.


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