Espelhos de água e boa sorte

De Conceição Evaristo vem o ensinamento: “Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz.” 

Em um turbilhão de imagens na cabeça, a literatura se apresentou como a rota de comunicação entre o de dentro e o de fora. Dentro, os pensamentos desassossegados, dúvidas insones e aquela urgência de não-sei-o-quê. Fora, a minha pele preta-terra refletida no espelho da parede, envelhecido de esperar o sentimento de pertencer. 

Escrevo, então, como quem passa pela vida com a constante sensação de estar fora do eixo, vibrando na frequência errada, escorregando pela dobra do tempo. A um triz de me virar pelo avesso, conheci em “Olhos d’água” a narrativa de tantas mulheres iguais a mim, irmãs de um ontem transatlântico que hoje fazem morada na minha rua, no meu bairro, no meu peito.

Ana Davenga, Maria, Natalina, Luamanda. Minha avó, minha bisavó, a vizinha do fim da rua que distribui leite e cultiva ervas de chá no vaso de barro – acalanto das memórias da infância. Todas essas mulheres e seus olhares caudalosos feito o mais profundo dos rios, seus olhos de água, emergem da mais vívida literatura e extravasam em palavras tão límpidas quanto a própria água que corre, inundando o meu olhar.

Foi assim, pela palavra escrita, que rompi o ciclo do silenciamento ao qual tantas mulheres negras são sentenciadas. Cerquei-me da força água-correnteza vinda de Conceição, o ímpeto e a audácia herdada de Carolina, a altivez de Sueli. Costurei em mim, feito tatuagem, os passos das minhas mais velhas e visto este manto de benção ancestral que me acompanha de casa rumo ao mundo do outro lado do portão.

Por meio das palavras que não emitem som, mas que se juntam assim meio tímidas e preenchem o espaço entre o de dentro e o de fora, caminho sob a luz que irradia dos livros rascunhados na estante. A palavra afetuosa e acolhedora das autoras e de suas personagens, mulheres negras como eu, que me ensinaram a falar pela escrita porque as palavras são assim, precisas. 

Em meio às lágrimas por um mundo caduco, ousei sorrir. E escrever. No espelho, os rostos delas, de tantas, de todas elas, se confundem com o meu e sussurram ao pé do ouvido segredos de sabedoria e boa sorte, com o carinho de uma canção de ninar ou o afago da pessoa mais querida.

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