Brasil finalmente considera mulheres negras em documento para ONU

Geledés na ONU, incidencia internacional de Geledés Instituto da Mulher Negra

Finalmente o governo brasileiro inicia um caminho para a presença da população afrodescendente no processo de negociação de gênero na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC). Na última semana, o Brasil enviou documento para contribuição nas negociações do Plano de Ação de Gênero. O documento reforça a importância de políticas voltadas às mulheres afrodescendentes no âmbito das negociações.

A mudança de rumo é resultado de um trabalho forte e insistente do movimento negro brasileiro, em especial das mulheres negras, Geledés – Instituto da Mulher Negra se sente parte atuante desse processo. Durante a COP28 em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, Geledés reforçou a importância da questão racial passar a fazer parte da agenda de discussões da ONU sobre os impactos das mudanças climáticas. A temática estava totalmente ausente nas discussões. Durante as negociações, Geledés se posicionou proativamente junto ao Estado brasileiro governo brasileiro e outras delegações em relação aos impactos do racismo ambiental, principalmente em relação às mulheres negras. Em dado momento, ao perceber uma janela de oportunidade nas discussões do documento sobre gênero e clima, a organização pediu a palavra e se colocou. 

Nesta discussão sobre gênero e mudanças climáticas destacamos a importância da inclusão do papel das mulheres afrodescendentes tanto pelo seu potencial de proteção das suas comunidades e elaboração de tecnologias sociais frente às crises, quanto pelo grau de vulnerabilidade a que estão expostas por serem atingidas em um contexto de múltiplas opressões. Portanto é fundamental que nas próximas discussões e nos documentos, as mulheres afrodescendentes tenham seus direitos assegurados.

Essa discussão não pode ficar mais à margem das negociações e prioridades na construção de políticas públicas do Estado brasileiro. Esse gesto demorou, e deve ser visto apenas como um primeiro passo importante na discussão sobre mudanças climáticas, com ampliação a outros temas das negociações internacionais no âmbito das Nações Unidas.

“O racismo ambiental e a injustiça climática interagem com outras formas de exclusão social, como a discriminação em razão de gênero, idade e deficiência. Análises intersecionais de violações de direitos humanos relacionadas ao meio ambiente e ao clima devem reconhecer que mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência e pessoas de gênero e sexualmente diversas que são membros de povos racialmente marginalizados enfrentam distintas violações de direitos humanos. Várias apresentações deixaram esse ponto explícito. As mulheres, em particular, desempenham papéis importantes na vida rural e agrícola, e geralmente estão na linha de frente das violações de direitos humanos relacionadas ao meio ambiente e ao clima. De fato, a Relatora Especial sobre violência contra mulheres e meninas relatou que a violência induzida pelas mudanças climáticas contra as mulheres é um fenômeno distinto causado pela feminização de vulnerabilidades que se cruzam. Idosos e crianças também são vulneráveis aos danos climáticos, principalmente quando vivem em comunidades economicamente marginalizadas ou Estados com recursos econômicos limitados para atender às suas necessidades específicas.” afirmou a ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância conexa, E. Tendayi Achiume.

O ano de 2023 foi fundamental para reconhecer que as alterações climáticas são sexistas, racistas e que as soluções climáticas não podem reforçar as desigualdades sociais em termos de raça e gênero. O impacto da crise climática não é o mesmo para todos. A população afrodescendente, em especial mulheres e crianças afrodescendentes, enfrentam os mais fortes impactos da crise climática, apesar de terem feito o mínimo para causar a crise. As práticas discriminatórias baseadas em raça e gênero, as normas socioculturais, os mitos e as leis criam impactos desproporcionais da crise climática nas mulheres e crianças em toda a sua diversidade, uma vez que não somente são excluídas dos recursos necessários para a adaptação, mas também são privadas do acesso a oportunidades, bens e serviços dado o racismo sistêmico, independentemente de sua posição na pirâmide social  e  assim são mais vulnerável a perdas e danos. 

Existem também diferentes responsabilidades na origem das crises climáticas, como mostra o relatório Confronting Carbon Inequality da Oxfam. Os mais ricos, a maioria dos quais vivem em economias industrializadas, são responsáveis pela maior parte das emissões cumulativas entre 1990 e 2015. Estes padrões de emissões também são influenciados por estereótipos de gênero, raça e relações de poder. As empresas mais ricas e com mais emissões também são geralmente geridas e beneficiam homens das economias industrializadas.

As políticas climáticas e os processos de suas negociações são altamente patriarcais e não abordam as aspirações e prioridades das mulheres afrodescendentes. A falta de inclusão das mulheres negras na elaboração de políticas climáticas significa que os seus direitos, necessidades e vozes são deixados de fora e desconsiderados. 

As economias globais precisam enfrentar esse sistema econômico que aprofunda as desigualdades econômicas, o racismo sistêmico, as injustiças de gênero e a degradação ambiental nos territórios vulnerabilizados. Entretanto, muitos dos atuais planos para corrigir as emissões globais, que são nomeadamente de NDCs e os planos nacionais, repetem padrões de desigualdades sociais sistêmicas. A utilização de energias renováveis, como os biocombustíveis, afeta a segurança alimentar e ameaça os direitos das mulheres afrodescendentes e quilombolas. Mesmo os projetos solares podem gerar a apropriação de terras e degradação ambiental, ao removerem milhares de famílias lideradas por mulheres afrodescendentes, quilombolas e indígenas. 

Os defensores da terra, das florestas e dos direitos humanos têm lutado contra as atividades extrativas que causam a crise climática que pressiona os territórios, acaba com florestas, polui e contamina o meio ambiente, quebrando relações das comunidades e levando ao deslocamento. Essas atividades são as responsáveis pelas violações sistemáticas dos direitos das mulheres afrodescendentes, quilombolas, rurais e indígenas. 

As desigualdades de raça e gênero estão intrinsecamente ligadas, e devem ser tratadas de maneira integrada. Isso requer uma abordagem holística que leve em consideração a complexidade dessas questões, de maneira a combater a significativa invisibilidade das mulheres afrodescendentes nas agendas climáticas e de desenvolvimento. Essas mulheres desempenham um papel fundamental na linha de frente da defesa de suas comunidades e enfrentam desafios únicos que devem ser abordados de maneira específica.

Portanto, é fundamental considerar raça e gênero como temas centrais. A participação e proposições de vozes de mulheres afrodescendentes devem ser amplificadas através de ações proativas. Estados e a sociedade civil devem mostrar respeitar estas pessoas como titulares de direitos e não como “beneficiários”. O conhecimento e a experiência que as mulheres têm nas comunidades da linha de frente faz parte da solução da crise climática. 


Leticia Leobet – socióloga e assessora internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra.

Mariana Belmont – jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista.

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