Zika e direito ao aborto

Interrupção da gravidez como opção de mulheres atingidas pelo vírus não tem sido colocada, com a devida relevância, na discussão sobre essa calamidade nacional

por Jacqueline Pitanguy no Globo

É imprescindível reconhecer que mulheres e homens têm o direito de tomar decisões e fazer opções existenciais e que uma das escolhas mais importantes na vida de uma mulher é ter filhos ou não. Em que circunstâncias gestar e parir, ou evitar uma gravidez, e quando interromper uma gestação — não como método de regulação da fecundidade, mas como último recurso frente a impossibilidade de assumir a enorme responsabilidade de ter um filho naquela situação — integram a agenda dos direitos individuais e da saúde pública.

A partir das décadas de 1960 e 70, assiste-se, em todo o mundo, à liberalização da legislação sobre o aborto. Na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia, em alguns países africanos e, mais recentemente, da América Latina, legislações relativas ao abortamento vêm sendo modificadas, ampliando as circunstâncias em que é permitida a interrupção voluntária da gestação — com condicionantes que crescem em função do tempo gestacional, especialmente a partir das 12 primeiras semanas, posto que não se trata de um direito incondicionado.

Além do risco de vida da gestante, da interrupção em caso de gravidez resultante de estupro e de anomalia fetal incompatível com a vida — únicas circunstâncias previstas na legislação brasileira, uma das mais restritivas do mundo—, o risco à saúde física ou psíquica da gestante, anomalias fetais graves que comprometem a qualidade de vida e condicionantes sociais, dentre outros, são considerados fatores que permitem o abortamento voluntário, legal e seguro. O denominador comum dessas legislações é o reconhecimento de que a mulher tem direito à proteção e ao respeito à sua dignidade e integridade física e emocional — e que os direitos do nascituro não são absolutos e não se sobrepõem aos direitos fundamentais da mulher. Apesar de que a Constituição de 1988 reconhece os direitos reprodutivos e de que estes foram referendados pelo Brasil na Conferência da ONU sobre População e Desenvolvimento de 1994 e no Consenso de Montevidéu de 2013, o debate sobre o abortamento ocorre no marco da crescente politização do dogmatismo religioso, em que as dimensões de saúde e direitos se veem encobertas por uma estridente condenação moral ou criminal.

Entretanto, o contexto epidemiológico atual demanda, com urgência, um debate público republicano, plural e respeitoso sobre o direito à interrupção da gravidez, ancorado nos parâmetros da opção versus imposição autoritária. O vírus da zika — transmitido pelo mosquito Aedes aegypt, que há décadas sobrevoa as áreas urbanas de nosso país, tornando a dengue uma enfermidade endêmica e com letalidade preocupante — trouxe um novo componente para o debate sobre saúde publica e direitos humanos: a incidência da microcefalia em fetos de mulheres grávidas que tiveram zika.

Entretanto, a discussão sobre a possibilidade de interrupção da gravidez como uma opção dessas mulheres não tem sido colocada, com a devida relevância, no rol dos temas que acompanham o debate público sobre a calamidade nacional. Recomendações veiculadas pela imprensa a partir de autoridades da área da Saúde sugerem que as mulheres evitem engravidar ou mesmo que sejam picadas pelo mosquito e adquiram imunidade antes de engravidar.

Gestantes com medo de sair de casa, corrida a repelentes e o pânico de, apos ter zika estar grávida de um feto microcefálico assombram milhares de mulheres pelo Brasil afora. Se a legislação brasileira acompanhasse a de países considerados exemplos de nações civilizadas, as mulheres que hoje enfrentam o pavor de estarem gestando um feto com microcefalia poderiam, em nome de seu direito à autonomia reprodutiva e à integridade emocional sua e de sua família, optar por levar adiante ou interromper essa gestação. Fora dos parâmetros da condenação moral e da criminalização e no marco do respeito à sua dignidade humana.

Jacqueline Pitanguy é socióloga

 

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