Falar é preciso

Temos de debater colorismo, porque cor de pele conta no país que foi miscigenado para tornar-se branco

Da Flavia Oliveira no O Globo

Montagem G1

Fabiana Cozza ficou só e exposta. Ninguém ganha quando uma mulher negra é relegada à solidão que a sociedade brasileira naturalizou. Terminou sem vencedor o Fla-Flu do feriadão nas redes sociais, porque vitimou uma artista de incontestável talento, cantora de repertório impecável. Fabiana é filha de pai preto e mãe branca, se autodeclara negra. Sambista de raiz, conhece a obra e a trajetória de Dona Ivone Lara e tinha relações pessoais com a compositora, a maior que o Brasil já conheceu. Fabiana foi atacada em sua identidade racial — e isso é inadmissível. Ponto. Mas o país que tem por hábito invisibilizar personalidades negras, que clareou seu maior escritor, Machado de Assis, e eternizou Lucélia Santos no papel de uma jovem escravizada, Isaura, precisava falar sobre colorismo. Ainda precisa.

Na minha fé, tempo é divindade. A ele recorri para resistir a apelos e provocações de amigos (e nem tanto) para comentar a sequência de acontecimentos que levaram Fabiana a renunciar ao papel de Dona Ivone Lara — para o qual fora convidada, cabe sublinhar. Há hora de falar e dias de calar. Silenciei em luto pela irmã negra ferida. E também como exercício pedagógico para os que embarcam em polêmicas virtuais no domingo e voltam à programação normal na segunda. Quem é branco pode não pensar em raça; quem é preto não tem o direito de esquecer.

Colorismo é debate necessário, porque cor de pele conta muito no país que foi miscigenado para tornar-se branco. Negros de pele clara ou menos escura — eu, entre eles — são mais aceitos na escola, no mercado de trabalho, nas relações sociais, nas artes. Privilégio no Brasil segue cartela de cores. Não é por acaso que contabilizamos mais de cem denominações étnico-raciais, muitas usadas para escamotear, sobretudo, origens africanas. Aqui, casais se recusam, sem constrangimento, a adotar crianças pretas retintas. Racismo.

É preciso falar sobre pigmentocracia, porque três de cada quatro filmes nacionais lançados em 2016 foram dirigidos por homens brancos, informou a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Em 162 novelas exibidas ao longo de três décadas, a partir de 1984, 91% dos personagens centrais eram mulheres ou homens brancos; só 11 foram protagonizadas por artistas pretos ou pardos, mostrou levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemma/Uerj). Negros e mestiços protagonizaram 11% dos 253 romances publicados no período 1990-2004; 94% dos autores eram brancos, segundo pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè na Universidade de Brasília (UnB).

Sobra invisibilidade aos negros e, por isso, a escolha de Fabiana Cozza para encarnar Dona Ivone virou debate público — repudiadas, por óbvio, as ofensas. A cantora tem legitimidade profissional e pessoal para o papel. Quem discute seriamente colorismo não pôs em dúvida nem o talento nem a identidade racial de uma artista maiúscula, mas a decisão política da produção de reverenciar a grande dama escalando uma cantora de pele mais clara. Não foi censura, mas questionamento à repetição de padrões históricos, agora confrontados.

Havia uma coleção de argumentos a favor de Fabiana, entre eles, a preferência da família de Dona Ivone Lara, segundo declarou o neto André. No meio, uma equipe sem convicção da escolha que anunciou — houvesse certeza, a artista seria blindada, a renúncia não aconteceria, o público decidiria. Do outro lado, estava uma militância cada vez mais crítica, empenhada em discutir privilégios e brigar por representatividade. O ativismo negro não é homogêneo — nem deve ser. É míope quem cobra unidade. Como em qualquer organização, movimento, grupo, há vivências, pontos de vista e ênfases diferentes. No fim, restou uma mulher negra ferida. Perdemos todos.

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