Alice Walker explora as tensões entre o racismo e a violência de gênero

“Mas onde estava o homem em mim que me deixou ir embora escondido?”, pergunta Grange Copeland, protagonista do romance de estreia de Alice Walker, publicado 12 anos antes do seu mais aclamado livro, “A Cor Púrpura”.

Reconhecida por retratar com sensibilidade e coragem a vida das mulheres negras no sul dos Estados Unidos, sua primeira obra se destaca por oferecer o mesmo tratamento sensível a dois trabalhadores negros rurais, Grange e Brownfield, pai e filho.

Explorando as tensões entre uma realidade atravessada pela segregação racial e pela pobreza e a responsabilidade dos homens negros quanto às próprias ações e erros, acompanhamos as diferentes fases da vida de Grange.

Ele é um trabalhador rural casado, que passa a beber, a humilhar a mulher e a negligenciar o filho conforme encolhe cada vez mais os ombros —sua forma mais expressiva de linguagem— diante da precariedade da vida.

Numa família em que “a depressão sempre dava lugar a brigas, como se elas fossem capazes de preservar parte do sentimento de estar vivo”, era “complicado compreender, mas não era difícil saber que eles se amavam”.

O livro nos leva a encarar os efeitos psicológicos que o racismo, o legado da escravidão e o machismo produzem em Grange e Brownfield, como a adoção de um comportamento violento contra mulheres negras, por meio do qual afirmam sua masculinidade.

Capa do livro ‘A Terceira Vida de Grange Copeland’ (Foto: Divulgação/ EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA)

Atravessado por várias ações violentas dos dois homens contra suas mulheres —que podem dar força a uma visão racista que reduz a complexidade das vidas negras a uma ideia de anomia e degradação moral—, o livro de Walker nos convoca a refletir sobre os limites do amor entre pessoas negras frente à necessidade de sobrevivência e desafia a armadilha de pôr “a culpa nos branquelo tudo”.

É em Mem, esposa de Brownfield, vítima constante de violência doméstica e obrigada pelo marido a abandonar o trabalho de professora, que vemos uma contundente recusa a deixar os brancos justificarem suas atitudes, no desabafo “diz praquele velho branco desgraçado, diz pra ele que a gente pode decidir o que vai fazer da nossa vida, a gente pode até ser pobre e negro, mas não é burro”.

Para Brownfield, no entanto, “os branco não deixa ninguém ter vontade de fazer o que é certo”, de modo que “sua negritude o protegia de quaisquer sentimentos de culpa que ameaçavam surgir dentro de si”.

Grange, por sua vez, conforme envelhece e passa a cuidar de uma de suas netas, Ruth, assume a responsabilidade por suas ações. Acredita, afinal, que “ninguém é tão poderoso quanto nós acha que é”. “Nós é dono da nossa própria alma, não é?”, diz, num embate entre pai e filho.

“A Terceira Vida de Grange Copeland” não é, portanto, um romance sobre a violência de Grange e Brownfield, muito menos sobre a destruição de suas famílias.

Pelo contrário, como o próprio título sugere, ele nos instiga a olhar como a autorreflexão dos homens negros em relação a sua própria responsabilidade pode ser parte da busca por liberdade e por uma existência mais humana, sobretudo quando justificar atitudes violentas com base unicamente no racismo tem custado a vida de inúmeras mulheres negras.

A TERCEIRA VIDA DE GRANGE COPELAND
Preço R$ 59,90 (336 págs.)
Autor Alice Walker
Editora José Olympio
Tradução Carolina Simmer e Marina Vargas

Fernanda Sousa

Doutoranda em teoria literária e literatura comparada na USP

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