Carolina de Jesus e a literatura de periferia

“Não tenho força física, mas minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis.” Carolina Maria de Jesus

Quando com Carolina, minha primeira pergunta foi: mas por que não a conheci antes? Mesmo estando nos bancos escolares há tantos anos, jamais havíamos sido apresentados. A história da autora, certamente, me deu as respostas. E, instantaneamente, me calou.

Enviado por Felipe S. Vivas de Castro via Guest Post para o Portal Geledés 

Uma mulher que foi capaz, a seu tempo, de lançar um olhar sobre sua existência e dos que a cercavam. Fruto da extrema pobreza, moldada pela miséria e pelo preconceito, encontrou na literatura o caminho necessário para denunciar ao mundo sua condição de exclusão social.

Sua obra, não fictícia, é o retrato fiel de uma realidade, até então, só representada por aqueles que, das academias, descreviam aquilo que, nos detalhes, não poderia mesmo ser notado por quem enxerga de fora. Imersa no mundo que apresentou em seus escritos, Carolina de Jesus mostrou-se legitimada a retratar de forma fidedigna o que é ser negra, pobre e favelada em uma grande metrópole como São Paulo.

A despeito de seu português rudimentar, a autora mostrou-se hábil escritora – talvez pela sede de transformação e por depositar na sua arte a esperança de dias melhores.

Carolina, prazer

Nascida em 1917, no distrito de Sacramento, na cidade mineira de Uberaba, Carolina de Jesus cursou apenas as duas primeiras séries escolares. Até 1937, quando migrou para a capital paulista, trabalhou em fazendas mineiras e, também, do interior de São Paulo.

Em São Paulo, capital, passou a trabalhar como empregada doméstica na casa do cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini, responsável pelo primeiro transplante de coração da América Latina. Aliás, foi na casa de seus patrões que teve acesso aos primeiros livros. Grávida, contudo, foi demitida e, após um período morando na rua e coletando papelão (foram quatro gestações indesejadas que culminaram em um aborto, ademais das crianças: João José, José Carlos e Vera Eunice), foi alvo de uma política municipal de recolhimento de moradores de rua e, assim, terminou conduzida para a favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, onde se tornou vizinha de um lixão já existente no local. Passou a viver, então, em um barraco de tábuas de madeira sobre a lama. Por sua personalidade pouco expansiva e temperamento forte, era, constantemente, hostlizada pela vizinhança.

Na década de 1960, aos 46 anos de idade, tornou-se a primeira escritora negra de sucesso, com o livro, fenômeno de vendas, “Quarto de Despejo”. Na mesma época,  recebeu o título de sócia honorária da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

Após o meteórico sucesso como escritora, Carolina de Jesus voltou a coletar papéis nas ruas e faleceu em 1977, aos 62 anos, vítima de insuficiência respiratória, pobre e, praticamente, anônima. Na ocasião, residia em Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo. Segundo relatos, Carolina e seus filhos só não passaram fome por que criavam porcos e galinhas, para subsistência.

Sua filha mais nova – que a acompanhava em todos os lugares e aparece em quase todos os registros da época, ao lado da mãe – atualmente tem sessenta e um anos e trabalha como professora de português na rede pública de São Paulo.

Quarto de Despejo

Desde onde, atualmente, está o Estádio da Portuguesa, em São Paulo, Carolina de Jesus registrou, em mais de vinte cadernos, o cotidiano da Favela do Canindé, entre 1955 e 1960. Todo o material deu origem à sua principal obra: Quarto de Despejo.

O livro, que revelou a miséria da favela em que vivia, vendeu onze mil exemplares apenas na primeira semana. A obra contou, ainda, com mais duas reedições, tradução para 13 idiomas e foi vendida em mais de 40 diferentes países.

A obra chamou a atenção da crítica especializada de sua época, especialmente, em dois aspectos: primeiro, por ser uma espécie de obra-depoimento cuja autora era mulher negra, mãe solteira, pobre e semianalfabeta; e pela escrita com grafia incorreta condizente com o português fruto de sua pouca instrução.

Ainda antes de tornar-se livro, os manuscritos viraram matéria no jornal Folha de São Paulo. Após um ano do lançamento, a obra foi utilizada como argumento para o teatro, estrelando a atriz Ruth de Souza como Carolina.

Por viver em meio a tanta miséria, não poderia ser diferente: toda a obra é marcada pela problemática da fome. Em um trecho, Carolina de Jesus escreve: “Sonhei que eu residia em uma casa residível […] Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar o bife, despertei. Que realidade amarga!”. Em outro trecho,ainda mais dramático, a autora transcreve a fala de sua filha mais nova: “Mamãe, vende eu para a dona Julita, porque lá tem comida gostosa.”.

Muitos moradores da favela, por terem sido relatados em diversos trechos dos seus escritos, passaram a oferecer agressões ainda maiores à autora. Uma vizinha, por exemplo, passou a chama-la de “escritora vira-lata”. O sucesso da publicação forçou a mudança de Carolina e sua família que passaram a viver no porão de uma fábrica de açúcar. No dia da mudança, foram apedrejados.

Objeto fora de uso

Alicerçada na miséria, a literatura periférica da autora foi capaz de reproduzir, de forma inovadora e sem o filtro dos intelectuais, a realidade além das fronteiras, ainda maiores que as geográficas, e que se impõem entre o barro e o asfalto, fortemente demarcadas nas grandes metrópoles. A sua obra mais relevante recebeu o nome de “Quarto de Despejo” justo por que, segundo a autora, ao comparar sua situação na favela com a encontrada no centro da cidade de São Paulo, percebia-se como um “objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.

Apesar de tudo, em seu livro, Carolina demonstra grande entusiasmo com políticos, em especial por Adhemar de Barros e por Jânio Quadros. Segundo seu relato, certa vez, recebeu ajuda de Quadros, então governador paulista, que lhe custeou um tratamento de saúde ao vê-la em profunda vulnerabilidade, catando papel com a filha mais nova a tiracolo. Já sua simpatia por Barros, vem da construção do Hospital das Clínicas.

Negrinha feia e chata

Nominada, por sua vizinhança, “negrinha feia e chata”, Carolina de Jesus conseguiu mudar-se para uma casa de alvenaria, após o meteórico sucesso de seu primeiro livro. Estaria, finalmente, em seu grande sonho: “uma casa residível” localizada em Santana – bairro de classe média na zona norte de São Paulo.

Além do preconceito racial a que foi exposta na nova moradia, sua presença mudou a rotina da pacata rua residencial. A maciça presença de emissoras de tevês somada a fila de pessoas pobres que buscavam em Carolina algum apoio financeiro,passaram a irritar a nova vizinhança. Além disso, era comum que a autora abrigasse  mendigos em sua casa e escutasse valsas, em altura elevadíssima, enquanto dançava – ignorando qualquer tipo de reclamação.

Apesar do frenesis em torno da novidade literária que representou, Carolina de Jesus foi consumida e, rapidamente, descartada, enquadrando-se na lógica capitalista de mercantilização. Sua obra-denúncia despertou a curiosidade dos elitizados autores do período e de parte da classe média melhor instruída, mas não foi muito além disso.

A importância da artista, porém, é inegável. Carolina de Jesus escancarou as condições miseráveis a que era submetida com sua família e comunidade; e rompeu paradigmas ao afirmar-se autora, apesar de mulher, negra, pobre e semianalfabeta.

Quarto de Despejo foi vanguardista e preparou caminho para o fortalecimento da arte marginal que tem como fonte e objeto de denúncia a pobreza e violência da vida longe dos centros das grandes metrópoles brasileiras.

Apesar do ostracismo que enfrentou ao fim da vida, Carolina de Jesus é a precursora dos raps, livros e poemas dos artistas da periferia que, assim como a autora, buscam significar sua existência, e o de suas comunidades, através da arte.

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