Nunca fez tanto sentido campanha ser substantivo feminino. Foi sobre memória, inspiração e valores consagrados por mulheres a convenção do Partido Democrata que, ontem à noite, confirmou a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, e o governador Tim Walz, de Minnesota, como adversários dos republicanos Donald Trump e J.D. Vance na disputa pela Casa Branca em novembro. Já no primeiro dia, Hillary Clinton indicou a estratégia, repetida posteriormente pelo casal Michelle e Barack Obama e também por Bill Clinton, ex-presidente e marido da ex-senadora, ex-secretária de Estado, candidata derrotada por Trump em 2016.
Hillary — aplaudida intensamente pela multidão de correligionários reunidos em Chicago e algo surpresa com isso — discursou de modo assertivo e sensível. Recorreu à expressão glass ceiling (teto de vidro, em tradução livre) para lembrar as barreiras impostas à ascensão das mulheres no mercado de trabalho, tão invisíveis quanto reais. Mencionou o incentivo que recebeu da mãe, Dorothy Howell Rodham, morta em 2011. E disse quanto ela e Shyamala Gopalan Harris, mãe e referência permanente nas falas de Kamala, falecida há década e meia, apreciariam e apoiariam as filhas poderosas da política.
No dia seguinte, foi a vez de Michelle Obama, ex-primeira-dama, reverenciar a memória de Marian Robinson, por oito anos a sogra mais famosa dos Estados Unidos. Michelle perdeu a mãe em maio passado e deixou muito claro o luto que ainda atravessa. A mãe a apoiou na carreira e ajudou nos cuidados com as duas netas, Malia e Sasha, durante os oito anos em que a família viveu na Casa Branca. A Donald Trump, sucessor do marido, endereçou desabafo após anos de desaforos racistas:
— Donald Trump fez tudo o que pôde para que as pessoas tivessem medo de nós. Sua visão muito limitada do mundo fez com que ele se sentisse ameaçado pela existência de duas pessoas altamente educadas, bem-sucedidas e que, por acaso, são negras.
Seguiu adiante em apelos por engajamento e ação e esperança e alegria para eleger a filha de mãe indiana e pai jamaicano, que pode vir a ser a primeira mulher a presidir os Estados Unidos. Obama, apresentado pela mulher, foi outro que exaltou figuras femininas próximas: a sogra Marian, uma mulher negra de Illinois, e a avó materna, Madelyn Dunham, uma mulher branca do Kansas. Duas mulheres de cor, origem e trajetória diferentes, disse, mas que se aproximavam na atenção à família, no trabalho duro e pouco valorizado, nas relações comunitárias sólidas.
Obama, na exaltação a Kamala Harris, ouviu de uma voz feminina na plateia a adaptação do slogan que lançou em 2004, na corrida ao Senado, e consagrou em 2008, na primeira campanha à Presidência. “Yes, we can” (sim, nós podemos) virou “Yes, she can” (sim, ela pode, é capaz), numa referência a Kamala. Ele percebeu a deixa, repetiu a frase, e democratas eufóricos na arena do Chicago Bulls fizeram o resto.
O bordão de campanha atribuído ao ex-presidente foi cunhado, décadas antes, por uma mulher. Foi Dolores Huerta, ativista, cofundadora, com Cesar Chávez, nos anos 1960, do Sindicato de Trabalhadores Rurais, quem deu o papo aos empregadores que negavam direitos aos lavradores:
— Sí, se puede.
A frase varreu o campo, o movimento por direitos civis e, neste século, foi traduzida e usada por Obama. Em 2012, o então presidente concedeu a Dolores a Medalha Presidencial da Liberdade, maior condecoração civil do país. Ela está viva, completou 94 anos em abril e, influente no eleitorado latino, endossou a indicação de Kamala à Presidência quatro dias depois de Joe Biden desistir da reeleição.
A convenção democrata foi um desfile de apelos à alegria e à participação política do eleitorado, também junto aos independentes e aos republicanos. Na convenção que formalizou a chapa Trump/Vance, o ex-presidente era mais aplaudido quando carregava nas críticas a Biden, aos imigrantes, aos diferentes, do que quando apresentava propostas de governo.
A tática democrata, seguida rigorosamente pelos oradores, foi tentar fomentar o comparecimento às urnas e atrair votos, pela via da emoção, da aproximação, das semelhanças, da alegria no convívio, no cuidado com o outro. Muita valorização do papel das mulheres na família, na comunidade, nas igrejas, na sociedade. Muita ênfase na capacidade feminina, no reconhecimento aos direitos de todas nós à liberdade — em particular, de decidir sobre os próprios corpos. Da campanha democrata à Casa Branca emerge um jeito de fazer política que os Estados Unidos devem não só ao eleitorado feminino, mas à população, há muito tempo. O Brasil também.