A Defensoria Pública da União e o combate ao Racismo como dever institucional.

FONTEJustificando, por Charlene da Silva Borges*
Charlene da Silva Borges é Defensora Pública Federal (Arquivo pessoal)

A Defensoria Pública enquanto instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado constitui-se em um verdadeiro pilar do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, é possível dizer que a função precípua prevista na nossa Carta Constitucional de prestar assistência jurídica aos necessitados não se limita apenas à atuação especifica relacionada a prestação de assistência jurídica em processos judiciais em que se verifiquem demandas com pretensão resistida, ou nos moldes daquele desenho clássico da teoria processual.

Em verdade, a Defensoria Pública possui a função constitucional não apenas de defesa, mas de promoção de direitos humanos, e, por conseguinte, possui atribuição para proteção de interesses de grupos sociais vulnerabilizados.  

Nesse contexto, no âmbito da Defensoria Pública da União emergiu em março de 2018, através da portaria nº 200/GABDPGF, o Grupo de Trabalho institucional voltado para abordagem de politicas etnorraciais, trazendo para o âmbito institucional discussões relacionadas ao combate ao racismo.

Ao Grupo de Trabalho Políticas Etnorraciais compete promover a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos da população negra, fomentar a efetivação da igualdade de oportunidades e o enfrentamento do preconceito, da discriminação e demais formas de intolerância étnica. Além disso, cabe a este grupo   monitorar casos sensíveis relacionados ao enfrentamento do preconceito contra a população negra, podendo realizar os encaminhamentos e recomendações que entender cabíveis, bem como fomentar a criação e adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa. 

Trata-se do reflexo da assunção do compromisso institucional da Defensoria em reparar a lacuna existente no Sistema de Justiça Federal sobre enfrentamento ao racismo. Como instituição vocacionada à promoção de direitos humanos, é inaceitável a manutenção da reprodução da lógica de silenciamento e invisibilidade do tema que perpassa a realidade das instituições do Sistema de Justiça Federal.

È importante ressaltar que, passados trinta anos após a entrada em vigência da Lei Caó ( Lei nº 7.716/89) ,   a qual definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e completou em janeiro recente trinta  anos, (cujo ícone que lhe confere o nome é objeto de homenagem por essa publicação ) na medida em que se constitui em um instrumento legislativo louvável e necessário,  sobreveio de maneira  tardia em relação a sua vigência, considerando-se, evidentemente,  nosso histórico de mazelas sociais advindas de um processo de longos 320 anos de escravismo, e 130 anos de uma abolição inacabada. Nesse sentido, é um dever de todas as instituições reparar a lacuna histórica de práticas racistas sistemáticas, bem como trazer as discussões relacionadas a práticas antirracistas dentro do escopo institucional.

O Racismo, conquanto as práticas decorrentes desse sistema impliquem em gravíssimas violações de direitos, ainda é uma matéria muito pouco discutida e refletida no âmbito do Sistema de Justiça Federal, o que causa uma falsa impressão de não ser matéria afeta ao interesse desse âmbito de Justiça, a despeito das especificidades das matérias tratadas na esfera de competência Federal. Contudo, tal pensamento reflete, em verdade, mais um aspecto da invisibilidade do tema, bem como das mazelas sofridas pelo seguimento da população afetada pelo racismo. A ideia subjacente é a de que este não é assunto prioritário para a justiça, vide que temos poucos dados sobre números de processos sobre a aplicação da Lei 7.716/89 .

Neste contexto, podemos atribuir ao mito da democracia racial insculpido na estrutura social brasileira, (que oculta algo para além daquilo que mostra, nas palavras de Lélia Gonzalez)  e tão denunciado pela obra de Abdias Nascimento,  uma grande parcela de responsabilidade no processo de invisibilização do tema no Sistema de Justiça.

O célebre jurista e filósofo Silvio de Almeida, na obra “O que é racismo estrutural” define o racismo como: “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam”. 

Este trabalho acadêmico propicia, ainda, uma importante reflexão sobre as instituições como um reflexo das tensões e lutas sociais travadas por indivíduos e grupos que disputam o poder. De igual modo, explica quais os fatores que levam a esse processo reflexivo dentro das instituições: 

“ A desigualdade social é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor os seus interesses políticos e econômicos.”

 Almeida ainda esclarece que o domínio de homens brancos no âmbito das instituições públicas, como por exemplo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o Ministério Público depende:  “ em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos.”

No censo do CNJ ( Conselho Nacional de Justiça) realizado em 2018,  80,3 % dos entrevistados se declararam  brancos ,  18% negros (16,5% pardas e 1,6% pretas) e 1,6% de origem asiática. A representação indígena mostrou-se ínfima, com apenas 11 magistrados declarados.

Nas demais instituições do Sistema de Justiça Federal não se verificaram levantamentos oficiais sobre o percentual de negros no âmbito institucional. A Defensoria Pública da União realizou seu primeiro concurso público com implementação de ações afirmativas apenas no ano de 2017, o sexto concurso da carreira. Contudo, ainda se encontra em andamento o censo oficial da carreira que, dentre outros marcadores, busca avaliar o recorte de raça dentro da instituição. Não obstante essas medidas adotadas, ainda se está longe de alcançar o patamar de equidade necessário, não apenas para efeitos de representatividade, mas, sobretudo, para o efeito especifico de ocupação de espaços de poder e decisão, para assim superar o liame de invisibilidade das questões raciais no Sistema de Justiça. 

Em tempos em que debatemos o conceito de interseccionalidade, o qual surgiu a partir de estudos voltados para a análise de opressão de gênero  sofridas por mulheres negras, em que se observa o fenômeno de que as formas de opressão e subordinação não operam de maneira dissociada, deve ser irrenunciável a obrigatoriedade dos sistemas institucionais de poder de realizar os necessários  recortes interseccionais, seja na aplicação e interpretação da Lei,  seja na valoração dos casos concretos, mas sobretudo na  implementação de práticas antirracistas na estrutura interna do órgão, bem como no planejamento e gestão de práticas institucionais.

Difundir, visibilizar os direitos da população negra e fomentar práticas antirracistas são deveres institucionais que precisam ser ampliados e reproduzidos em outras instituições que possuem o poder de transformação social. Para tanto, é muito importante que os negros ocupem esses espaços de poder e decisão, eis que iniciativas desse tipo passam necessariamente por disputas e debates internos fomentados por quem se compromete com o combate ao racismo e na maioria das vezes essa visão parte de quem está sujeito a sofrer os efeitos deste mal  na própria pele.

*Charlene da Silva Borges é Defensora Pública Federal


REFERÊNCIAS:

AKOTIRENE, Carla. O Que é Interseccionalidade –  Belo Horizonte-MG. Editora Letramento/ Justificando, 2018)

Censo  do Poder Judiciário- CNJ. Disponível em : https://www.cnj.jus.br/files/publicacoes/arquivo/a18da313c6fdcb6f364789672b64fcef_c948e694435a52768cbc00bda11979a3.pdf. Acesso em 20 de setembro de 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-189, 2002.

DE ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Editora Letramento/Justificando, 2018.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais Hoje 2, Brasília: Anpocs, p. 223-244, 1983.

NASCIMENTO, Abdias (1978). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (Rio, Paz e Terra).

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