Há alguns meses atrás fui apresentada a um som que foi me arrebatando aos poucos,uma voz gostosa, daquelas que você não consegue parar de escutar. A música era assim:
Por Karina Vieira do Meninas Black Power
“Eu fico sempre na moral
Mas, sabe? Más noticias abalam o meu astral
Eu tô legal, não tá ruim
Tô forte, tô viva, tô bem longe do fim
Acho, né?
Sempre levando uns toco, a vida dando uns soco
Há quem ache que é pouco, mas não é
Mas nem ligo pros outros, quero chegar no topo
Loucura racha coco. Sem ibope pra mané
Sem desperdiçar energia
Várias patifarias querendo me arrastar
Não dou ideia pra essas heresias
Sou de periferia, tipo, ruim de se enganar
Mas deixa os bicos zoar
Ninguém vai assumir, mas todos querem brilhar
Minha intuição quer cantar, tira um segundo pra ouvir
Que eu não costumo falhar…”
Corri pra descobrir a dona daquela voz, daquele beat poderoso, e me deparei com Tássia Reis, 25 anos, rapper, paulista do interior, Jacareí. Já apaixonada, quase surtei quando recebemos o convite para participar de um laboratório chamado Atravessamento, ministrado pela Tássia e pela Isis Carolina no evento PRÉ-ELLA, na Casa Coletiva, aqui no Rio. Algumas tardes de trocas, conversas e um ótimo show acabaram nessa entrevista. Espero que vocês curtam e conheçam um pouco mais da Tássia e toda sua musicalidade.
MBP – Quem é Tássia Reis?
Tássia Reis – As perguntas simples são as mais difíceis de responder [risos]. Eu sou uma pessoa determinada que gosta de criar e transformar as coisas, de unir pessoas, de questionar. Talvez por isso, meu impulso musical e artístico, acredito que a música e arte no geral tem esse caráter além de aquecer a nossa alma. Muitos dizem que sou muito corajosa e até maluca. Talvez eu seja também.
MBP – Como se deu a sua vivência enquanto mulher preta? Como você descobriu que é uma mulher preta?
TR – Lembro do meu pai me dizendo (e até hoje diz) que somos lindos porque parecíamos com ele. Ele brincava com propriedade porque é lindo mesmo, então esse ensinamento foi algo orgânico. Fez muita diferença pra mim, quando entrei na escola. Acredito que a escola é o pior lugar para uma menina preta. É um bombardeio de informações e estereótipos racistas que faz você acreditar que é menos. Quase sempre acreditamos. Meus pais me achavam linda, mas na escola não me achavam, e esse período que transita da infância para a adolescência é muito cruel pra nós. Minha lembrança de me sentir maravilhosa e vencer todo esse vírus foi quando conheci a culturaHip Hop e tive referências fora de casa. Quando me apresentei pela primeira vez com o meu primeiro grupo de dança, senti que o que meu pai sempre me dizia e diz. Sempre foi verdade eu ser linda e maravilhosa.
MBP – Você já participou de algum movimento (movimento negro/coletivo negro)?
TR – Sou o tipo de pessoa que se envolve muito no que faz. Quando comecei a dançar não foi diferente. No começo dançava numa oficina de dança e me dediquei muito pra aquilo, o que fez criarmos autonomia para dançar além das oficinas. E fui passando de grupo em grupo, porque a realidade colidia com a nossa utopia de ser dançarinos profissionais, e muitos desistiram. Até que passei estive num grupo em especial. Se chamava Stylo Guetto e ao passar por esse processo de saída das pessoas, as mulheres do grupo resistiram e naquele momento senti que tínhamos uma parada pra fazer. Nos unimos, fizemos uma coreografia com rap nacional e lutamos pra apresentar num festival de dança que pra gente foi a glória. Autonomia de criar e apresentar algo por nós mesmas foi incrível! Foi a primeira movimentação de que me lembro. Depois acabamos nos tornando uma pequena crew que tumultuava nos eventos, representando sempre nas rodas de dança, um bando de mulher dançando muito.
TR – Eu sempre gostei do meu cabelo, mas tinha vergonha porque as outras pessoas não gostavam. Sempre fui resistente a fazer um alisamento. Achava que não combinava comigo o cabelo alisado. Porém fiz diversos relaxamentos com o pretexto de “soltar a raiz” pra ficar mais fácil de pentear. Usava preso ou trançado. Minha mãe trançava meu cabelo. Quando cresci, ela não podia mais trançar porque não tinha tempo, aí aprendi a trançar e me trançava sozinha. Na escola eles me viam como a “garota estilosa” por causa da trança, mas a bonita com certeza não era eu (na visão deles). Quando terminei a escola em 2006, eu tinha 17 anos e já ensaiava meu crespo natural. Já andava com ele solto, fazia menos relaxamentos, já fazia as nagôs mais “loucas”. Acho q sair da escola foi libertador. Me lembro que em 2010 meu cabelo estava totalmente natural e mais uma vez me senti maravilhosa. Depois disso fui mudando por estética. Queria mudar e mudar. Até fiz um processo de relaxamento, mas não era isso que queria. Em 2012 eu resolvi cortar meu cabelo e me inspirei no corte da Rihanna em Rude Boy, só que crespo. Abalei!!! Fui diminuindo aquele moicano até que virou o topete, que uso no clipe Meu RapJazz. Depois daí, em 2013, eu realizei o sonho que era raspar a cabeça. Me lembro que vi uma mulher negra e careca numa festa em 2006 e ela parecia a pessoa mais elegante que já tinha visto. Fiz! Raspei e desmitifiquei o mito de que o cabelo era a moldura do rosto. Me perguntaram se eu odiava meu cabelo, ou se havia me tornado homossexual (não é brincadeira!) e não foi nenhuma coisa e nem outra (no caso da segunda eu tenho muito o direito de me tornar se assim um dia desejar!) eu só queria ver o meu rosto. As pessoas te fazem refém dos estereótipos. Eu odeio que me digam o que eu tenho que fazer. Todos te cobram, você tem que usar alisado, você tem que usar crespo, você tem que cortar, você tem que deixar crescer, você tem que pôr aplique, você não pode pôr aplique. Entendi que o que tinha que fazer primeiro era me amar como vim ao mundo, e se eu quiser mudar o meu cabelo é porque eu quero. Porque eu não sou obrigada a nada. No momento estou deixando crescer porque estou morrendo de saudades de bater o meu cabelo.
MBP – Qual é o conceito do EP ? O que você espera expressar com ele?
TR – O conceito básico do EP é me apresentar. É como se fosse um grande “oi!” que gostaria de dar ao mundo, contando um pouco de minha história começando pela minha infância, citando algumas experiências, falando também sobre minha esperança no amor e minha autoestima, da minha ansiedade e do modo como gostar de enxergar as coisas com positividade, questionamento e romantismo (de um modo geral).
MBP – O que é ser mulher preta no rap?
MBP – Quem são as mulheres que você admira? Na música, na arte, na dança…
TR – A falta de referência nas mídias brasileiras nos fez prestar a atenção nas irmãs negras que estão a nossa volta, o que me foi e tem sido muito valioso porque tenho valorizado a cada dia mais minhas amigas que são excepcionais, não somente por serem belas, mas por serem MARAVILHOSAS. Vou citar algumas delas: Isis Carolina Vergílio (bailarina, performer e produtora), Lívia Mafrika (universitária, dançarina e cantora), Juliana de Jesus (produtora executiva), Xênia França (cantora e compositora, vocalista da Aláfia), Natasha Vergílio (bailarina, performer e produtora), Samira Carvalho (modelo, artesã e estilista), Daniela Rodrigues (empresária e produtora), Daniele Da Mata (empresária, maquiadora na Escola de Automaquiagem para pele Negra “Da Mata Makeup ” ), Loo Nascimento (estilista, stylist, cool hunter, empresária e mais uma penca de coisa) Camila Alvarenga (universitária e empresária), Amanda Coelho (empresária e hair stylist), Welida Souza (hair stylist e dançarina), Janine Mathias (cantora e compositora ) e por aí vai, seguindo a lista do bonde que só cresce. Contando inclusive com vocês, Meninas Black Power, que chegaram na minha vida agora e eu já admiro, viu?!
MBP – O que o Atravessamento pra você? Qual foi o processo de construção?
TR – Pra mim, é um sentimento de invasão, que pode ser tanto bom quanto ruim. Me sinto atravessada quando ando na rua e os olhares me condenam ou subjugam simplesmente pelo fato de ser negra; me sinto atravessada quando vou há alguma festa e algum cara acha que pode me tocar ou me ofender com palavras vulgares sem ao menos me conhecer, achando que sou um objeto qualquer e disponível. Porém me sinto atravessada de uma maneira positiva também. Quando me reconhecem na rua e me lançam palavras de carinho e estímulo, mesmo nunca tendo me visto na vida. Me sinto fortemente atravessada quando as pessoas vão ao meu show e eu vejo no brilho do olhar de cada uma que me permite, a felicidade por estar ali, e a satisfação dessas pessoas ao se sentirem representadas. Me sinto atravessada agora escrevendo pra vocês, porque falar de mim sempre foi difícil. Eu sou muito reservada e revelar com riqueza de detalhes algumas coisas, me atravessa muito. Acho que a vida é feita de atravessamentos sim, e o que nos determina é o que fazemos para lidar com tudo isso.