A falácia da proteção à vida

Meninas serão as mais prejudicadas com o projeto sobre aborto

A existência de uma lei não é condição suficiente para garantir um direito à população. O respaldo legal é, muitas vezes, o primeiro passo de um longo caminho até chegar ao beneficiário final, que nem sempre conhece seus direitos. Estar na lei é necessário, mas não suficiente. Esse é o caso do direito ao aborto no Brasil.

Desde 1940, está no Código Penal que o aborto é permitido em casos muito específicos. Hoje, uma mulher tem respaldo legal de interromper sua gravidez em três situações: em casos de estupro; quando há risco de vida para a gestante; quando o feto é anencéfalo. E só.

Mas um projeto de lei quer restringir ainda mais esses casos.

Nesta semana, a Câmara dos Deputados votou pela urgência do projeto de lei 1.904/24, que equipara o aborto ao crime de homicídio em gestações acima de 22 semanas.

Ainda assim, não é porque está na lei hoje que mulheres conseguem ter acesso ao direito de interromper a gravidez. Não apenas mulheres: crianças e adolescentes grávidas, vítimas de violência sexual, são constantemente vítimas também de violência institucional, que cria incontáveis barreiras para acessar o atendimento médico necessário.

Há poucos anos, o Brasil parou para comentar o caso de uma menina de dez anos, grávida, vítima de estupro por uma pessoa próxima, que sofreu repetidas violências no processo de conseguir o aborto.

A menina teve o procedimento de interrupção da gravidez negado, seu nome foi vazado, ela precisou ser inscrita no Programa de Proteção a Testemunhas, teve que cruzar o país até um hospital que aceitasse realizar o procedimento e ser exposta a inúmeros protestos que tentavam impedir o procedimento médico respaldado por lei.

Não é um caso isolado. São muitas as meninas vítimas de estupro que têm seu direito ao aborto dificultado.

Se o projeto de lei que a Câmara corre para aprovar sem passar pelas comissões temáticas for aprovado, essas meninas seriam as mais prejudicadas, em um cenário que já é tão desfavorável para elas. São meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade, abusadas, dependendo da boa vontade de conselheiros tutelares, de equipes médicas e de ONGs que se arriscam para prestar o apoio necessário, diante de um mar de conservadorismo que se preocupa mais com um feto do que com a vida de crianças.

Crianças vítimas de estupro frequentemente demoram a descobrir a gravidez e são lembradas constantemente do trauma vivido na busca por seus direitos.

Sem constrangimento algum, o deputado autor da proposta admite que seu objetivo é testar o compromisso pessoal do presidente contra o aborto.

São os corpos de meninas e mulheres sendo usados, mais uma vez, como moeda de troca política. Não tem nada a ver com proteção à vida.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...