A luta pela maternidade plena no feminismo negro

Enviado por / FonteJacobin, por Paula Nunes

Como advogada criminalista e ativista do movimento negro, todos os inquéritos policiais e ações judiciais em defesa de mães de jovens assassinados por forças policiais em que atuei, me fizeram refletir a respeito do luto inesperado. Afinal, no curso natural da vida, esperamos perder nossos pais e avós, mas nenhuma mãe espera perder seu filho, ainda mais um filho assassinado. Essa provavelmente é uma dor que nunca passa. Ainda assim, mães negras e periféricas se organizam em coletivos que transformam o luto em luta e oferecem ombro e apoio àquelas que também perderam seus filhos.

“Alguém precisa fazer alguma coisa. Nossos filhos são assassinados e nós ficamos aqui como mortas-vivas”. Esse foi o conteúdo de um áudio que recebi na semana do segundo turno das eleições municipais, de uma mãe que teve seu filho assassinado pela Polícia Militar há alguns anos e que atualmente articula um movimento de apoio e orientação a familiares de vítimas de violência do Estado na Zona Leste de São Paulo.

Essa solidariedade que é construída a partir da dor comum recebeu de Vilma Piedade o nome de dororidade, categoria que explica a potência dos casos de mulheres que compartilhando da dor e do luto inesperado pela perda de seus filhos, impulsiona o nascimento de movimentos sociais por todo o país. Mães de Maio e Mães em Luto da Zona Leste, em São Paulo, Mães de Acari e Movimento Moleque, no Rio de Janeiro são alguns exemplos importantes.

Em 2019, pelo menos 6.357 pessoas foram assassinadas pelas forças policiais brasileiras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Dessas vítimas, 79,1% eram negros, 74,3% eram jovens de até 29 anos e 99,2% eram homens. Não sobram dúvidas, portanto, de que a violência do Estado através da polícia tem um alvo certeiro: jovens negros e periféricos. E apesar de estarmos vivendo um momento em que os debates acerca da violência racista por todo o mundo ganharam força, ainda pouco se discute sobre as pessoas que vivem o luto dessa violência, como os familiares das vítimas.

Quando uma pessoa é assassinada pela polícia, o procedimento das famílias é quase sempre o mesmo: na impossibilidade de um enterro gratuito, contam com a solidariedade de vizinhos e conhecidos para arcar com os custos; depois, antes mesmo de lidarem com a dor da perda, lutam para obter imagens de câmeras de vigilância e depoimentos de testemunhas que comprovem a inocência das vítimas. Essa é quase uma segunda morte, comprovar que a pessoa assassinada não é criminosa, não é traficante, ou que, ainda que fosse, não merecia morrer daquela forma, sem poder se defender. É a partir dessa ausência de políticas públicas de auxílio aos familiares para lidarem com a dor da perda ou pela busca de justiça que surgem os movimentos de familiares de vítimas de violência.

Organizando a luta

O Movimento Mães de Maio, uma das maiores e mais respeitadas organizações de familiares de vítimas de violência no país, surgiu após os crimes de maio de 2006, em São Paulo. Quando ao menos 564 pessoas foram assassinadas no estado, entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, em uma ação criminosa que fazia parte de um plano de vingança de policiais militares contra membros do Primeiro Comando da Capital (PCC). De acordo com a Secretaria Especial de Direitos Humanos (2014), dentre os mortos, 505 eram civis e 59 eram agentes de segurança pública. A maior parte deles eram homens, com até 24 anos, negros e 94% não tinham nenhum antecedente criminal.

Edson Rogério da Silva foi um dos executados durante os crimes de maio de 2006. Edson era gari, foi abordado por policiais e, depois de liberado, foi assassinado com três tiros. Outro caso cruel no mesmo período foi o assassinato de Ana Paula Santos, que estava grávida de 9 meses quando foi abordada com o namorado por homens encapuzados e assassinada com tiros na barriga, matando também a criança. Tanto a mãe de Ana Paula, Vera Lucia dos Santos, quanto a mãe do Edson, Dona Débora da Silva, fundaram ao lado de outras mulheres o Movimento Mães de Maio.

Vera Lúcia dedicou sua vida à luta por justiça para a filha, o genro e a neta. Passou mais de três anos presa após ter sido forjada como traficante de drogas e no ano de 2018, 12 anos depois dos assassinatos, partiu. Foi encontrada sem vida em sua cama, ao lado de documentos pessoais e fotos de sua filha e genro. Era o dia em que seu genro faria aniversário. Também deixou a camiseta do movimento Mães de Maio pendurada na porta do quarto de seu filho mais novo. Infelizmente, Vera não é a única mãe que adoeceu após a perda brutal de uma filha. Como ela, muitas outras sofrem caladas ou com o apoio exclusivamente uma das outras, em dororidade, depois dos milhares de assassinatos que acontecem por ano em nosso país.

Maternidade no feminismo negro

No livro Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis relata que mulheres escravizadas provocavam abortos porque estavam seguras de que não queriam trazer ao mundo crianças que seriam escravizadas. Mais tarde, na década de 1930, milhares de mulheres negras foram submetidas a esterilizações compulsórias. Ainda que a autora retrate a realidade estadunidense, um simples paralelo com a história brasileira demonstra o quanto a maternidade plena não é até hoje um direito garantido às mulheres negras. Para cada uma das milhares de vidas de jovens periféricos que são ceifadas todos os dias, as mulheres periféricas têm retirado o direito de serem mães.

 Essas histórias de mães em luto e em luta trazem a reflexão sobre o que é e por onde passa a luta do feminismo para a maioria. São muitas as histórias que a História não conta, de mulheres e lideranças populares, que fizeram transbordar na dor a solidariedade para lutar ao lado de outras tantas mulheres. É a partir desses exemplos de organização política e de intensa solidariedade que todos os socialistas podem extrair valorosas lições para construir o mundo que almejamos.

Diferentemente de outras vertentes do feminismo, o feminismo negro sempre teve a luta pela vida dos homens negros como uma de suas pautas centrais. O combate ao fim do genocídio da juventude negra fez com que muitas feministas negras rejeitassem a experiência do cárcere como a principal aposta para a solução de conflitos na sociedade capitalista. É assim com Angela Davis, mas também com feministas negras brasileiras contemporâneas como Juliana Borges, Dina Alves e Suzane Jardim.

Concretamente, isso significa dizer que qualquer feminismo que se pretenda para a maioria da população precisa estar atento ao modelo de família que vitimiza e encarcera todos os dias jovens negros e periféricos e, por que não, suas mães, avós, esposas, filhas e irmãs, que a partir da dor do luto assumem a frente da luta contra a violência.

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