As histórias que me contaram durante a infância, sobre Maria, a mãe do menino Jesus me fizera crescer acreditando que a maternidade é um momento sagrado, mais do que isso, uma mulher é um ser sagrado. Afinal somos nós, fêmeas, que trazemos a vida para o mundo. Claro que além dessa Maria, uma outra Maria, também me fez acreditar nesse sagrado, minha mãe. Eu sou a casula, por isso nunca pude a ver carregando um beber dentro dela, mas as fotos, as histórias, tudo que ela passou para conseguir trazer a mim, as minhas irmãs e o meu irmão a esse mundo, a dor do parto – que mesmo nunca tendo passado por ela me assusta.
Quando criança, a primeira mulher que vi grávida foi a minha irmã mais velha. Que da noite para o dia, deixou de ser uma menina para se tornar uma mulher. Mas, para mim não importava, mulher ou menina ela continuava sendo a pessoa que eu amava, quem eu queria que me abraçasse nos momentos de tristeza e nos momentos de alegria. Independente disso, ela passou por todo ritual de uma mulher grávida, que envolvia: a preocupação das pessoas em torno da alimentação dela, que agora mais do que nunca deveria ser saudável; não carregar muito peso, além é claro, do que ela levava na própria barriga, e essas coisas. Um cuidado que eu não sei explicar. Que apesar de ter se tornado mais intenso durante a gestação, não se destinou apenas a esse período da vida dela. Era um cuidado que destinamos a ela por ela ser quem ela era, irmã, filha, namorada e agora uma mãe em gestação.
Foi apenas quando eu saí para o mundo que percebi, que esse sagrado não era bem como eu imaginava, nem era destinado a todas as mulheres. Para o mundo ser mulher, estava muito mais relacionado com a manutenção de papéis sociais, com a cor da sua pele, com o lugar de onde você vem. Para o mundo ser mulher e ter uma vida ou maternidade sagrada, no sentido de ser respeitada, está relacionado com o que o ordenamento social acha que você pode fazer e os perigos que você e a sua prole pode trazer a esse ordenamento.
Entrei em contato com as histórias do tempo da escravidão, onde as mulheres pretas eram obrigadas a trabalhar incansavelmente, mesmo carregando os seus filhos dentro delas, bem como depois do nascimento, os tinham que leva com elas para a rotina incessante de trabalho sub-humano, que enfrentavam diariamente. Entrei em contato com a história de mulheres, empregadas domésticas e diaristas, em sua grande maioria pretas, que repetiam o ciclo, tendo que trabalhar durante todo o período da sua gravidez e na maioria das vezes precisando levar os seus filhos para o trabalho, na casa das suas patroas. As histórias são várias e endereçadas às mulheres racializadas desse Brasil, desse mundo. Se é a luta diária pela vida, que faz de uma mulher sagrada, essas mulheres com certeza detêm o sagrado. Mas não acho que seja o momento de normalizar essa situação, normalizar isso me parece tão errado. Ninguém deveria ter que ocupar o espaço destinado ao escapar da morte para ser sagrado. Principalmente quando para uns o sagrado é dado de bandeja ao nascer.
As histórias se repetem, seja no trabalho exaustivo, durante a gestação. Seja no ser mantida presa à homens, que ainda hoje podem decidir o rumo das vidas dessas mulheres, inclusive a tirando delas, se assim eles acharem que elas merecem, ou talvez no que seja mais cruel, imputando aos seus filhos e filhas o sofrimento, para as atingir. Seja com o Estado, que ainda hoje busca manter o controle dos seus corpos, com a precarização das suas vidas ou com a morte em operações militares, feitas para preservar a ordem social – não vou nem ater a ironia disso.
Sojourner Truth estava certa na sua indagação, “E eu não sou uma mulher?”. E ainda hoje, as mulheres pretas, têm que indagar o mesmo. Se a gravidez é uma santidade, se a mãe é o sagrado, se os filhos são sagrados para essas mulheres, porque não lutamos pela vida dessas mulheres, por que deixamos que os seus filhos morram?
Talvez a maior infelicidade que podemos ter nos dias atuais, seja poder resgatar nas histórias do passado as palavras que melhor descrevem o nosso presente – e não, não estou negando o poder e a importância da história. Apenas sinto dor por saber que por mais que os anos tenham avançado, por mais que muitos falem em um progresso da humanidade, a história continua se repetindo de forma trágica.
Aquele homem lá diz que as mulheres precisam de ajuda para entrar em carruagens e atravessar valas, e sempre ter os melhores lugares não importa onde. Nunca ninguém me ajudou a entrar em carruagens ou a passar pelas poças, nem nunca me deram o melhor lugar. E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem o meu braço! Eu arei a terra, plantei e juntei toda a colheita nos celeiros; não havia homem páreo para mim! E eu não sou uma mulher? Eu trabalhava e comia tanto quanto qualquer homem – quando tinha o que comer -, e ainda aguentava o chicote! E eu não sou uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria delas sendo vendida como escrava, e quando gritei a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher?
Trecho de discurso proferido por Sojourner Truth, mulher, ex-escravizada, no ano de 1851.
* Caroline Matias de Souza é bacharel em Relações Internacionais, mestranda em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais (PUC-SP) e cursa especialização em História da África, Educação, Cultura e Relações Internacionais.
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