Espaços de Liberdade e Autonomia – os clubes negros em Minas Gerais

Os clubes negros, também chamados de associações negras, são espaços culturais, recreativos e políticos formados por pessoas negras e para pessoas negras, voltados para a abordagem e defesa dos seus interesses e questões. Esses espaços estão presentes na sociedade brasileira desde o século dezenove, disseminados por todas as regiões do país. Em Minas Gerais, os clubes negros se espalharam por diversas regiões do seu território. Para se ter uma ideia dessa difusão, entre 1870 e 1960 foram criadas ao menos cerca de 60 associações negras.

Ainda que seja difícil incluir os clubes negros dentro de um tempo específico, a maioria das associações negras em Minas Gerais foi fundada no século vinte, momento posterior à abolição da escravidão no Brasil, ocorrida em 13 de maio de 1888. Esse período ficou conhecido como pós-abolição, marcado pelo fortalecimento da discriminação racial e do racismo – chamados à época de “preconceito de cor” ou “ódio de raça” –, o que condicionou e limitou as possibilidades da população negra de construir meios de vida dignos, com respeito e igualdade. Ou seja, o racismo no pós-abolição negou aos negros o acesso ao exercício da cidadania plena.

Muitos clubes negros foram criados dentro deste contexto e tiveram como objetivo estabelecer uma forma de organização política que visava a construção de projetos de sociedade e de nação pautados na igualdade racial, na cidadania plena e no combate ao “preconceito de cor”. Esse foi o caso, por exemplo, do Clube Mundo Velho, associação negra criada na cidade de Sabará em 1894 e em funcionamento até os dias atuais. Além de oferecer bailes e promover festas carnavalescas, esse clube também disponibilizava aos seus sócios serviços de beneficência ou auxílio mútuo, que, geralmente, eram ajudas em dinheiro para o associado que estivesse passando por necessidades financeiras, em casos de doença, acidente de trabalho, invalidez, velhice, prisão e morte.

O auxílio mútuo, também chamado de mutualismo, foi muito importante no início do século vinte, quando ainda inexistia um conjunto de leis de amparo ou formas de previdência ou socorro públicos aos trabalhadores. Desta forma, a beneficência e o mutualismo presente nos objetivos das associações negras demonstram a importância da defesa do trabalhador negro num contexto de existência limitada de políticas públicas de amparo social. Ou seja, o objetivo dos clubes negros foi proteger os seus sócios dos riscos que comprometiam as suas condições de vida.

A defesa da condição material de vida das pessoas negras foi tão importante que esteve presente também nos objetivos de muitos outros clubes negros criados em Minas Gerais, como foi o caso do Clube 28 de Setembro (1904) da cidade de Pouso Alegre; do Clube Cutubas (1925) da cidade de Leopoldina; da Associação Santarritense José do Patrocínio (1932) da cidade de Santa Rita do Sapucaí; da Legião Negra de Uberlândia (1935); da Associação Cultural, Beneficente e Recreativa José do Patrocínio (1952) da cidade de Belo Horizonte, entre muitos outros.

Ao lado da prática do auxílio mútuo, esses clubes negros ainda ofereceram um conjunto variado de atividades culturais, como bailes e festas, principalmente o carnaval; saraus literários; concursos de beleza; eventos esportivos; escolas e aulas de alfabetização; piqueniques e manifestações políticas.

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Sobre as manifestações políticas dos clubes negros, talvez a principal delas tenha sido as comemorações que celebravam o 13 de maio e o 28 de setembro, datas da publicação de duas importantes leis na história do Brasil. Em 13 de maio de 1888 foi decretada a abolição legal da escravidão no Brasil. Já o 28 de setembro se referia a Lei n. 2040, promulgada em 28 de setembro de 1871, conhecida popularmente por “lei do ventre livre” que, entre outros aspectos, deu início ao processo da abolição no Brasil, estipulando que a partir daquela data os filhos de mulheres escravizadas nasceriam livres.

Essas leis tiveram profundo impacto na vida de muitos homens e mulheres negros e mudaram o rumo da história do Brasil, por isso os clubes negros comemoravam essas datas como as grandes festas da liberdade do povo brasileiro. Tais comemorações foram mobilizadas e instrumentalizadas pelos integrantes dos clubes negros com a intenção de relembrar a luta pela liberdade e o fim da escravidão, mas também como momentos de denunciar e reatualizar antigas demandas.

Outra manifestação política importante dos clubes negros foi a publicação de “jornais negros”, também chamado de “imprensa negra”. Segundo a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, a imprensa negra foi formada por jornais produzidos por pessoas negras e para pessoas negras, que publicavam assuntos de interesse desses indivíduos e grupos. Muitos clubes negros criaram os seus jornais que, geralmente, divulgavam as suas atividades e a vida social dos seus sócios, mas não somente isso. Diversos outros assuntos eram abordados nesses periódicos, como por exemplo acesso à educação, direito ao voto, mercado de trabalho, práticas de discriminação e preconceito de cor contra os negros, entre outros.

Dos seis jornais negros que circularam em Minas Gerais ao longo do século vinte, cinco estavam ligados a clubes negros. O jornal A Verdade, criado em 1904, pelo Clube 28 de Setembro de Pouso Alegre inaugurou a imprensa negra no Estado. No início dos anos 1920, o mesmo clube ainda lançou O 28 de Setembro, mas ambos tiveram vida curta, não passando de algumas edições. Em 1935, a Legião Negra de Uberlândia lançou o jornal A Raça. Depois de longo período de intervalo, no final dos anos 1970, o Elite Clube de Uberaba criou o jornal O Objetivo, que circulou entre 1977 e 1979. Ainda na década de 1970, integrantes do Movimento Negro Unificado de Belo Horizonte lançaram o boletim Força Negra, que circulou em poucas edições no ano de 1980. Entre 1986 e 1987, o Grupo de Estudos Afro-Brasileiros Aticorene, de Juiz de Fora, publicou o Aticorene: Boletim GEABA, jornal que divulgou as suas atividades. Nessa mesma época, entre 1987 e 1991, o Chico Rei Clube, de Poços de Caldas, lançou o jornal Chico Rei.

Capa do jornal A Raça, órgão da Legião Negra de Uberlândia, publicado em 1935. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Homens e mulheres negros refletiram e se expressaram sobre o mundo no qual estavam inseridos através dos seus jornais e dos seus clubes. Não é à toa que os clubes negros tenham sido concebidos como uma extensão da família e uma rede de solidariedade fundamental para a sobrevivência de muitas pessoas negras. Ou seja, os clubes negros foram uma forma de organização política que tinha como objetivos a construção de projetos de sociedade e de nação pautados na igualdade racial, na cidadania plena e no combate ao racismo.

Os clubes negros foram construídos para que os seus integrantes pudessem realizar suas festas, desenvolver suas práticas de auxílio mútuo, praticar esportes, estudar, promover piqueniques e concursos de beleza, enfim, enfrentar a opressão e o racismo e discutir seus medos, anseios e sonhos com liberdade e autonomia. Por isso, podemos dizer que os clubes negros criaram projetos coletivos racialmente orientados, isto é, todas as atividades dos clubes tinham como preocupação essencial a defesa da gente negra, a denúncia e o combate ao racismo, a luta pela igualdade racial e por uma sociedade que respeitasse sua cidadania. 

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Assista ao vídeo do historiador Jonatas Roque Ribeiro no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual. promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).


Jonatas Roque Ribeiro

Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); E-mail: [email protected]; Instagram: @yaya.massemba.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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