A cena se passa em janeiro de 2020. Surpreendentemente, a família está reunida na sala de jantar. Adão termina um copo de suco detox. Acabou de comer alguns brioches. Eva, sua esposa, está muito entretida com o celular. Os filhos são dois, um homem e uma mulher. Ela distrai-se a olhar para o shih-tzu. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê uma mensagem que recebeu pelo celular. Cai a internet da casa, o filho levanta a cabeça e pergunta:
— “Hey”, que é genocida?
Adão fecha os olhos imediatamente, fingindo dormir.
O filho insiste:
— Velho!
Eva intervém:
— Adão, Enzo está chamando. Não dorme depois do jantar que faz mal.
Adão não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que?!
— Queria que tu me “dissesse” o que é genocida.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer trinta anos e não sabes ainda o que é genocida?
— Se soubesse não perguntava.
Adão volta-se para Eva:
— Ele não sabe o que é genocida!
— Eu também não sei.
— Que me diz?! Não sabes o que é genocida?
— Nem eu, nem tu; aqui em casa ninguém sabe o que é isso.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A tua cara não me engana. Tu “é” muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é genocida! Então? Estamos esperando! Diga!…
— Tu “quer” é me atucanar!
— Homem, para que não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando a Valentina perguntou o que era plebiscito. Tu só “enrolou”!
— Plebiscito – acudiu Adão – é uma forma de exercício da soberania popular. Está na Constituição.
Todos riram nervosos.
— Sim, agora sabe porque foi à internet; mas dou-lhe um doce se me disser o que é genocida sem desbloquear o celular!
— Que gostinho tens em tornar-me ridículo na presença dos nossos filhos.
— Oh! ridículo é tu mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: “Não sei, Enzo. Não sei o que é genocida; vai buscar na internet quando ela voltar, meu filho”.
Adão ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para não me humilhar! Quero manter minha autoridade moral. Vai pro inferno!
Exasperadíssimo, nervoso, Adão deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava: um celular com internet e um carregador
A filha toma a palavra:
— Coitado do velho! Zangou-se logo depois do jantar! Logo ele que sofre de refluxo.
— Não fosse tolo — observa Eva — e confessasse que não sabe o que é genocida!
— Pois sim — acode Enzo, pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela “treta” —, pois sim, velha; chama o velho e façam as pazes. Da última vez que brigaram ele quis que eu arrumasse um emprego.
— Sim, façam as pazes! — diz a filha de 35 anos também preocupada se tiver que trabalhar. — Que tolice duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa de um mero genocida!
Eva levanta os olhos, já arrependida, e vai bater na porta do quarto:
— Adão, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
Ele esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se no sofá chesterfield.
— É boa! — brada Adão depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra genocida! Eu!…
A mulher e os filhos aproximam-se dele horrorizados.
O homem continua, num tom profundamente dogmático:
— Genocida…
E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Genocida é a qualidade de quem tenciona a destruição total ou parcial de um grupo de pessoas.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— É algo terrível, percebem? Acredito que nunca ocorrerá no Brasil.
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