A mãe da socióloga Flávia Pinto, candidata a deputada federal pelo PDT do Rio, entrou para as vergonhosas estatísticas nacionais de feminicídio: foi assassinada pelo marido, seu padrasto, quando ela tinha 10 anos. Nascida na favela da Vila Vintém, em Padre Miguel, zona oeste, Flávia já havia perdido o pai aos 3, também assassinado. Viveu o racismo por si e pela memória da mãe. “Ele era um traficante branco, descendente de italianos, e minha mãe, uma trabalhadora negra. Cresci ouvindo que ela era piranha, mas sobre o bandido, só elogios, ‘bonito, simpático’”, conta Flávia, 42, que conseguiu se formar apenas aos 37, graças a uma bolsa de ação afirmativa, a mesma recebida por Marielle Franco, assassinada em março, para estudar na PUC-Rio.
A descoberta da trajetória de Marielle – negra, gay, nascida e criada na favela da Maré – encorajou Flávia a sair candidata em 2018. Mãe de santo desde os 23, ela diz que o racismo “aumenta quando se é da religião negra porque reafirmamos a cor dez vezes mais. Senti o ódio de muita gente”. Por isso, quer fazer de seu mandato uma bandeira contra a intolerância religiosa, pela igualdade de gênero e prevenção da violência contra a mulher. “Crianças começam a usar álcool e droga a partir dos 11 anos. Isso alimenta o ciclo de violência do qual ela é vítima: feminicídio, pedofilia, estupro, ou, ainda, ela se torna a mãe do presidiário e do menino morto”, diz.
Assim como Flávia, outras mulheres com histórias parecidas com a de Marielle se inspiraram a fazer política, em diferentes partidos, e levar adiante o legado da vereadora. Por isso, dizem estar dispostas a lutar pelos direitos das populações que sempre se mantiveram à margem do poder: negros e mulheres, e enfrentar a violência da qual Marielle foi vítima. A primeira batalha é para mudar as igualmente vergonhosas estatísticas brasileiras sobre a representatividade feminina na política. Ocupamos a 154ª posição em um ranking de 190 países, atrás de Iraque, Afeganistão e Arábia Saudita, segundo a União Interparlamentar (IPU, na sigla em inglês). Além disso, ao longo da história foram eleitas para a Câmara dos Deputados 220 mulheres – juntas não ocupariam a metade das 513 cadeiras. Uma das razões para esse cenário desfavorável, segundo a ONG Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o Cefemea, é o descumprimento por parte dos partidos da Lei de Cotas Eleitorais, que estabelece um mínimo de 30% de candidaturas para elas.
A dupla jornada também dificulta a atuação das mulheres na política – a maioria das poucas eleitas são as que têm menos encargos domésticos, por serem divorciadas ou solteiras, ou porque são de classe alta.
Se já é difícil para uma mulher branca se eleger, o que dizer das negras? “Para que o Brasil seja de fato democrático, precisamos dar voz a todos os grupos da sociedade”, defende a arquiteta e urbanista Tainá de Paula, candidata a deputada estadual pelo PCdoB do Rio, pela primeira vez, aos 35 anos. “A sub-representatividade das mulheres negras é abissal. Por isso as políticas que nos interessam não são implementadas”, analisa. Criada na favela Loteamento, na zona oeste, e mãe de Aurora, 4 anos, integra o movimento PartidA FeministA, do qual Marielle também fazia parte: “Queremos ocupar os parlamentos do Oiapoque ao Chuí”. Tainá cresceu ouvindo histórias na família sobre o racismo e o assédio nas ruas escuras e nos transportes públicos, o que a ajudou a se interessar pela política como forma de mudar a realidade. “A cidade, para nós, é um lugar de medo e insegurança”, diz. Na universidade, dedicou-se a estudar os bairros periféricos e entrou para o movimento estudantil. Depois, se envolveu na política sindical, e, com a morte de Marielle, decidiu se candidatar: “Agora é fundamental, ao invés de recuar, a gente não se encolher e garantir avanços”.
Tainá quer exercer um mandato coletivo, tendo como motes o direito à cidade e à moradia digna e a luta por políticas específicas para as mulheres e os negros.
UMA NOVA HISTÓRIA
Erica Malunguinho atravessava uma rua movimentada de São Paulo quando uma jovem negra a interrompeu: “Vou votar em você! Só você me representa”. As duas se abraçaram na faixa de pedestres. Militante do PSOL e candidata de primeira viagem a deputada estadual, agradeceu: “Vamos ocupar os espaços de poder”. Já indo embora, ao som das buzinas, a eleitora gritou: “Ocupar, não. Vamos fazer reintegração de posse!”. Se eleita, entrará para a história como a primeira mulher negra trans a ocupar uma cadeira legislativa no Brasil.
“A tragédia de Marielle não silenciou a gente. Pelo contrário”, afirma Erica, 36. Nascida no Recife, filha de uma enfermeira engajada em movimentos sociais, aprendeu em casa a atuar politicamente. Aos 19, decidiu morar sozinha em São Paulo, onde continuou a “negociar a sua existência” no cotidiano da cidade: “O corpo que habito é político. Como negra e trans, tenho um corpo considerado dissidente e marginalizado dentro da ‘normalidade’, que vive dialogando, criando cisões, tensionando e movimentando a polis.
Negocio diariamente para viver. Política é isso”, afirma a candidata. Ao mesmo tempo, atuou ao longo de anos como arte educadora, formando professores da rede pública municipal de São Paulo, e nunca deixou de lado a vida de artista. “Comecei a produzir trabalhos artísticos e intervenções em moda, pensando moda como discurso de comportamento”, conta.
Em 2016, abriu um ateliê, o Aparelha Luzia, no centro da capital, hoje um centro cultural batizado por ela e seus frequentadores, negros em sua maioria, de “quilombo urbano”. São as questões e demandas históricas debatidas nesse espaço que ela deseja levar consigo para o mandato coletivo. Mas não só. Em voz consoante com suas colegas candidatas, quer reescrever a história do Brasil.
“Não se trata de uma nova narrativa, e sim de dar visibilidade à que esteve esmagada e oprimida durante séculos”, explica. “O apagamento da história do povo preto é uma questão fundante na sociedade brasileira, por isso precisamos ter cabeças pretas na economia, na saúde, na educação etc.”
Em Recife, a advogada Alice Gabino, 38 anos, candidata pela primeira vez a deputada estadual pela Rede, costuma contar quantos negros estão nos ambientes que frequenta. “Quase sempre sou eu e mais um”, diz. “Quando me tornei advogada, não conseguia estágio. Passava nas seletivas, mas na hora H os escritórios diziam não. Foi tamanha a dificuldade por ser mulher negra que desisti e fui trabalhar em uma ONG como voluntária”, conta.
Filha de uma costureira sertaneja e de um técnico de telefonia, participou do processo de construção da Rede, em 2011, ocupou cargos no governo pernambucano e decidiu se candidatar, inspirada pela coragem de Marielle: “Sofri racismo a minha vida inteira, até por parte de brancos da minha família. Resistência é meu sobrenome”. Para ela, ocupar uma cadeira na Assembleia significará também um passo na luta contra a cultura machista pernambucana. “Aqui a própria mulher tem dificuldade de acreditar que outra será capaz de fazer um bom trabalho na política.”
Misoginia e racismo no trabalho levaram Aline Torres, relações públicas e especialista em gestão cultural, de 32 anos, a uma depressão profunda. “Meu chefe falava em público que tinha vontade de pegar meu cabelo de Bombril e esfregar no chão, dizia ‘quem essa negrinha pensa que é?’ e tentou me agredir até fisicamente”, lembra a paulistana de Pirituba, bairro da periferia de São Paulo. Como consequência do assédio, desenvolveu transtornos psicológicos: pânico e tricotilomania, síndrome que faz arrancar os cabelos violentamente. “Eu puxava tufos inteiros das minhas tranças afro, fiquei cheia de buracos na cabeça”. Um ano e um pedido de demissão depois, decidiu voltar à militância na juventude do PSDB, partido pelo qual se tornou a primeira mulher negra candidata a deputada federal da capital paulista.
“Demorei a ter coragem de enfrentar a candidatura, e foi graças ao exemplo de Marielle. Não podemos nos calar. Estou preparada para sofrer preconceito da esquerda e da direita, sei que vão me chamar de ‘a negra do PSDB’, a ‘capitã do mato’.” Aline aposta no diálogo entre negros e brancos, pobres e ricos, para mudar as condições de vida dos jovens da periferia. “Não vai ser apontando o dedo para o outro, dizendo que a culpa de tudo é dele e dos avós dele, que vamos chegar lá.” Pragmática, vê sua eleição como forma de ajudar negros e negras a também ascenderem socialmente: “Quero construir pontes. Certa vez, quando eu era coordenadora de um espaço público cultural, me disseram ‘você vai transformar isso aqui num quilombo’, e eu não briguei. Apenas pensei ‘nossa, que boa ideia, é isso mesmo que vou fazer’”. Aline garante que conversar sobre as mazelas da mulher negra periférica com colegas de partido, muitos dos quais são brancos, héteros e de classes sociais abastadas, tem feito com que eles se juntem às suas trincheiras.
Tainá de Paula também não quer falar só para os seus: “Estabelecer uma agenda antirracista no Brasil passa pelos brancos fazerem a reflexão sobre desigualdade racial. Minha batalha é inseri-los na discussão dos seus próprios privilégios”. Para Erica Malunguinho, é preciso, principalmente, que os não negros e brancos cedam o protagonismo e os lugares de poder aos negros para que as reparações sejam feitas. “Se você não questiona o fato de só ter brancos na sua escola, faculdade, emprego, você é racista. Quero perguntar às pessoas que não estão submetidas ao discurso de opressão, mas se dizem empáticas às causas do povo negro: vocês estão levando a sério mesmo? Ou é só para fazer hashtag na hora em que morre um dos nossos, como Marielle? Nessa hora já é tarde, você também puxou o gatilho”, diz Erica.