Adversidade na primeira infância e os impactos do racismo na saúde

FONTEPor Dr. José Luiz Setúbal, no Instituto Pensi
Foto: @ ARTSY SOLOMON

Desigualdades nos resultados de saúde pública impõem custos humanos e econômicos substanciais em todas as sociedades, e isso é dramático quando a desigualdade é enorme como no Brasil. A relação entre adversidade precoce na infância e bem-estar ao longo da vida apresenta uma rica estrutura científica para um pensamento novo sobre a promoção da saúde e prevenção de doenças em geral, ampliado por um enfoque mais profundo em como o racismo influencia disparidades mais especificamente.

Numa revisão realizada pelo professor e amigo Jack Shonkoff, encontra-se uma visão geral dos avanços na biologia da adversidade e resiliência através das lentes da primeira infância, seguida por uma visão geral dos efeitos únicos do racismo na saúde e uma revisão seletiva dos resultados da pesquisa de intervenção relacionada.

A saúde e o desenvolvimento de crianças pequenas são moldados por um processo de adaptação contínua e interativa (nos níveis molecular, celular, de sistema orgânico e comportamental) que começa na concepção e se estende ao longo da vida. A plasticidade subjacente que influencia essa capacidade adaptativa e que diminui com a idade, pode levar a uma ampla gama de resultados positivos ou negativos que são influenciados pelas ​​interações entre as predisposições genéticas individuais e os ambientes nos quais o desenvolvimento se desenvolve.

estresse positivo foi definido como uma resposta fisiológica (por exemplo, frequência cardíaca e pressão arterial elevadas) a estressores normativos (por exemplo, lidar com a frustração) que é breve e de magnitude leve a moderada. O estresse tolerável está associado a experiências não normativas que apresentam maior dificuldade ou ameaça (por exemplo, morte ou doença grave em um familiar) com a disponibilidade de pelo menos uma relação de proteção que proporciona uma sensação de segurança, o que facilita a restauração de respostas fisiológicas ao estresse a linhas de base homeostáticas. O estresse tóxico, em contraste, é o resultado da ativação forte, frequente ou prolongada dos sistemas de resposta ao estresse na ausência da proteção de uma relação de suporte. O estresse tóxico não é definido pela fonte ou tipo de estresse. É definido pela magnitude e duração da resposta biológica ao estressor

Uma extensa pesquisa sobre a associação entre adversidade na infância e disparidades na saúde ao longo da vida demonstrou consistentemente uma relação linear entre o número de fatores de risco e a probabilidade de resultados ruins. O conceito resultante de carga cumulativa de risco, em vez de ponderação diferencial de fontes específicas de adversidade ou ameaça, levou a uma atenção limitada aos desafios exclusivos apresentados por fontes significativas de adversidade que requerem estratégias distintas de intervenção preventiva. Já é tempo de nos concentrarmos nos impactos únicos do racismo nas bases da saúde física e mental. Acredito que o mesmo seja válido no Brasil, onde os problemas raciais se confundem com os problemas sociais, mas precisamos combater também nosso racismo estrutural.

A importância crítica dos esforços para abordar as desigualdades estruturais moldadas pelo racismo sistêmico e outras influências de nível macro na saúde física e mental é clara. A ciência da adversidade e resiliência sugere que um maior progresso na promoção da saúde e prevenção de doenças em escala também exigirá estratégias eficazes para abordar a sensibilidade diferencial à adversidade nos primeiros anos das crianças. Enquanto a comunidade científica continua a buscar maior compreensão da variação individual, a prática eficaz de saúde pública exigirá atenção para diminuir a plasticidade do desenvolvimento ao longo do tempo.

As estratégias atuais focadas no acesso a cuidados médicos de alta qualidade e programas para a primeira infância focados em crianças e famílias são importantes, mas devem ser aumentadas por um foco mais intencional e na contracorrente das múltiplas formas em que o racismo estrutural e cultural e padrões profundamente enraizados de discriminação criam condições físicas, sociais e econômicas que ameaçam desproporcionalmente o desenvolvimento saudável de crianças de cor e suas famílias.

Em algumas circunstâncias, membros de grupos estigmatizados respondem a estereótipos raciais negativos generalizados, aceitando-os como verdadeiros. Esse endosso das crenças da sociedade dominante sobre a inferioridade inata ou cultural de alguém é chamado de racismo internalizado ou auto estereótipo. A pesquisa indica que o racismo internalizado está associado a baixa autoestima e bem-estar psicológico e níveis mais elevados de consumo de álcool, sintomas depressivos e obesidade. Identificar a idade mais precoce em que esse processo de internalização pode começar é essencial para uma intervenção preventiva.

Adversidades significativas no início da vida podem minar as bases de um desenvolvimento saudável. Os potenciais precipitantes incluem as dificuldades socioeconômicas da pobreza e do racismo; as ameaças psicossociais de maus-tratos a crianças e violência comunitária; os desafios interpessoais da depressão materna e vícios dos pais; as perturbações fisiológicas da poluição do ar, água contaminada e outros tóxicos ambientais; e as consequências metabólicas da má nutrição. Nenhuma dessas condições invariavelmente leva a uma resposta ao estresse tóxico, mas cada uma pode ser um fator predisponente potente para deficiências permanentes na saúde física e mental.

Décadas de pesquisas sobre adversidade e resiliência sugerem que o número de fatores de risco ou fontes de adversidade é um indicador mais forte de problemas de saúde e desenvolvimento do que uma ponderação diferencial de adversidades específicas. Apesar desta evidência, os fardos únicos e substanciais que as tensões do racismo estrutural, cultural e interpessoal impõem na vida diária das famílias que criam filhos negros pequenos fornecem um argumento convincente para repensar a crença convencional no acúmulo genérico de adversidade versus a ameaça distinta de marginalização social, econômica e política profundamente enraizada à saúde física e mental.

A evidência impressionante de desigualdades raciais e étnicas na prevalência, complicações e taxas de mortalidade da pandemia da doença coronavírus 2019 (COVID-19) direcionou a atenção crescente para muitas das persistentes desigualdades sociais e estruturais (por exemplo, moradias superlotadas, serviço de linha de frente empregos, acesso desigual a cuidados médicos) que comprometem a saúde e o desenvolvimento das pessoas de cor nos Estados Unidos. No Brasil, isso não ficou tão evidente, embora tenha sido levantado.

Famílias e comunidades desempenham um papel crítico na proteção de crianças pequenas dos estressores externos do racismo, evitando assim as interrupções fisiológicas internas de uma resposta ao estresse tóxico. A atenção primária à saúde tem um papel vital a desempenhar no tratamento da importância fundamental da sensibilidade diferencial à adversidade e suas implicações para abordagens individualizadas e centradas na família para fortalecer as bases do desenvolvimento saudável. O desafio enfrentado pela comunidade de saúde pública é dar mais atenção, em nível social, à necessidade essencial de confrontar as influências patogênicas do racismo estrutural e cultural por meio de uma lente na primeira infância.

Fonte:

Annual Review of Public Health

Vol. 42:115-134 (Volume publication date April 2021)

Early Childhood Adversity, Toxic Stress, and the Impacts of Racism on the Foundations of Health

Jack P. Shonkoff,1,2,3,4 Natalie Slopen,1,2 and David R. Williams1,2,5

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