Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil

Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil[1]

Pedro Henrique Souza da Silva* via Guest Post para o Portal Geledés

Em tempos de recrudescimento do racismo –  vide a situação de Ferguson nos Estados Unidos, ou ainda os recorrentes casos brasileiros –, o devir do afrodescendente se torna algo obscuro e incerto. Ao negro ainda são impostas determinadas posições sociais que, via de regra, não escapam das páginas policiais, ou a personificação da luxúria (por parte da negra, mulata) e da virilidade (homem negro). De certo, muito ainda há que se fazer até que tal condição – imposição – seja superada, contudo da parte dos oprimidos são criadas táticas de resistência que buscam marcar uma episteme negra-ancestral frente aos constantes silenciamen-tos provenientes do discurso hege-mônico. É nessa posição de embate que podemos enquadrar a escritora afro-brasileira Cidinha da Silva, mineira, autora de diversos livros, dentre os quais Cada Tridente em seu lugar e outras crônicas (2007), Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! (2008), Os nove pentes d´África (2009), Oh margem!: reinventa os rios! (2011), Mar de Manu (2011),  Kuami (2011),  Baú de miudezas, sol e chuva (2014) e Racismo no Brasil e Afetos Correlatos (2014). Fortemente engajada na luta pelos direitos dos afrodescendentes bem como na questão da paridade de gênero, fundou o Instituto Kuanza em 2005, além de ter sido gestora da Fundação Cultural Palmares.

Em sua mais recente empreitada, o volume Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014), organiza as vozes de 48 autores com o intento de construir um “diagnóstico robusto da realidade sociocultural do setor do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil, transversalizado pelas dimensões de raça e africanidades” (SILVA, 2014, p. 14). Trabalho de fôlego, com 402 páginas, dividido em oito capítulos, inicia-se pela apresentação de doze conceitos necessários à organização do pensamento cultural negro de modo a marcar o tom da argumentação em defesa das políticas públicas da leitura e do livro em seu recorte racial. A saber: africanidades, bibliodiversidade, cultura negra, favela, letramento, literatura afro-brasileira, literatura periférica, oralitura, periferia, quilombos urbanos, racismo institucional, relações raciais.

No segundo capítulo, “Padê”, a leitura é transferida à atmosfera do livro por meio do pensamento de pesquisadores que dissertam sobre a formação do sujeito escritor/leitor negro, sua ausência no mercado editorial e nas representações pouco comuns entre os personagens literários. No terceiro, “Dimensões de Africanidades e Relações Raciais nas Políticas Públicas para o Livro no Brasil”, propõe-se uma reflexão a partir das editoras especializadas em autores e temáticas periféricas e a constante resistência ao monopólio das grandes editoras. No quarto, “Dimensões de Africanidades e Relações Raciais nas Políticas Públicas para a Leitura no Brasil”, são debatidos a construção da afrodescendência e o combate ao racismo a partir das políticas para a formação de leitoras/leitores. O quinto, “Políticas Públicas para a Literatura Negra e Periférica”, traz à baila ambos os conceitos de modo a apresentar as suas similitudes, não restritas aos temas, e evidenciar a produção de autores negros e moradores da periferia.

Por seu turno, no sexto capítulo “Políticas Públicas para as Bibliotecas Negras e/ou Periféricas” é emoldurado o atual quadro dessas bibliotecas, que constituem um importante ponto da resistência e formação de leitores. Por sua vez, o sétimo, “Ações Afirmativas na Cultura”, mostra a importância dessas políticas no enfrentamento a uma cultura de exclusão racial. Por fim, o oitavo, “Uma Canção para Duas Escritoras de Sobrenome Jesus: Maria Tereza e Carolina Maria”, encerra o livro com um texto ficcional de Cidinha da Silva em homenagem a Maria Tereza Moreira de Jesus – representada na capa do impresso –, além da celebração da obra de Carolina Maria de Jesus pela passagem, em 2014, do centenário de nascimento da autora.

Um volume com tão vasto horizonte de reflexões em torno da leitura e do papel por ela exercido na construção identitária e cultural não podia deixar de fora os posicionamentos de escritores e críticos literários. E, consequentemente, discussões sobre o estatuto do texto literário e, em especial, sobre a literatura negra ou afro-brasileira. Para o poeta e crítico Edimilson de Almeida Pereira, “se há na literatura um viés libertário, questionador das ordens instituídas, não há como negar o contraponto que lhe confere um caráter ‘formador’ de identidades e de relações” (p. 198). Assim, o autor revela-se atento à sua responsabilidade de criador, empenhado em defender a liberdade de pesquisa e invenção estéticas – sempre comprometidas quando se submete a uma literatura programática –, mas, ao mesmo tempo, consciente do poder que tem nas mãos, sobretudo quando escreve para crianças e jovens: “somos artistas antes de tudo e, ao mesmo tempo, desejando ou não, pedagogos” (p. 198).

O artigo de Regina Dalcastagnè – “Por que precisamos de escritoras e escritores negros?” – sintetiza, a nosso ver, o espírito do livro ao refletir sobre o contexto histórico de produção da literatura no Brasil. A pesquisadora inicia destacando que entre nós o escritor conserva a imagem e o papel social adquiridos no século XIX, de porta-voz da “coletividade” e do “espírito do tempo”. Em seguida, destaca o caráter “homogêneo” e de classe predominante em nossas letras: “nosso cânone literário é feito de brancos, de negros que não são vistos como tal (caso de Machado de Assis) e de negros deixados às margens (como Lima Barreto ou Cruz e Sousa)” (p. 66). Dalcastagnè lembra a seguir a exaustiva pesquisa que realizou com centenas de romances brasileiros publicados a partir de 1990 em nossas principais editoras para destacar que somente 5% dos autores desses livros são pretos ou pardos, números estes que se repetem quanto ao levantamento de personagens, o que implica em quase total ausência da temática do racismo. A ensaísta questiona os critérios de valoração e o próprio conceito de literatura vigente e conclui:

E é por isso que precisamos de escritoras e escritores negros, porque são eles que trazem para dentro de nossa literatura outra perspectiva, outras experiências de vida, outra dicção. Na sociedade brasileira, a cor da pele – assim como o gênero ou a classe social – estrutura vivências distintas. Precisamos de mais negras e negros, moradoras e moradores da periferia, trabalhadoras e trabalhadores escrevendo, não para coletar um punho de “testemunhos” (o nicho em que em geral são colocados), mas para que sua sensibilidade e imaginação deem forma a novas criações, que refletirão, tal como ocorre entre os escritores da elite, uma visão de mundo formada a partir tanto de uma trajetória de vida única quanto de disposições estruturais compartilhadas. (p. 68).

De fato, a existência de olhares outros, marcados pela diferença cultural, está também presente nas reflexões de outros autores. Como a poeta Lívia Natália que, em seu texto “Meu pai não montava a cavalo, nem ia para o campo: algumas questões sobre a formação da escritora e do escritor negro no Brasil contemporâneo”, aborda a problemática da formação da escritora e escritor negro. Ou ainda, Ronald Augusto, um “escritor moderno” que adentra a seara das multifacetadas definições e adjetivos da literatura produzida por afrodescendentes, a respeito disso afirma o autor “o que me parece ser fundamental admitir é que, antes de qualquer coisa, literatura negra só pode ser mesmo literatura, isto é, uma forma de discurso que tem sua autonomia conectada ao campo estético” (p. 207). Por sua vez, Esmeralda Ribeiro, apresenta a experiência do grupo Quilombhoje que, há 37 anos, se afirma no campo literário brasileiro com a publicação de escritoras e escritores negros.

Destarte, Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil, marca um importante avanço no que cerca as discussões da afirmação da afro-brasilidade. Além de apontar para um futuro otimista ao passo que, conforme a autora, o livro “é para ser usado como ferramenta na construção e efetivação de políticas públicas e não como souvenir” (SILVA, 2015). Cidinha da Silva conversou com o Portal literafro sobre o volume e o mercado do livro no Brasil em seu recorte racial.

 

****

 

Portal literafro: Maria Mazarello Rodrigues afirmou em seu texto “Relação da Mazza edições com o poder público em seus 33 anos de existência” que antes da promulgação da lei 10.639/03 as publicações da Mazza Edições entravam nas escolas “apenas pela porta dos fundos”. Em sua opinião o que mudou no mercado editorial brasileiro em pouco mais de uma década da lei e como essa mudança é refletida na escola e em outros ambientes de formação de leitores.

 

Cidinha da Silva: Boa pergunta, muito boa, porque toca no ponto fulcral do mercado editorial para as publicações que tratam de africanidades (história e cultura africana, história e cultura da diáspora africana positivadas), racismo, relações raciais (assimétricas, resultado das práticas reiteradas, multifacetadas e mutantes de racismo e discriminação racial), para além de questões didáticas e militantes.

Mercado é dinheiro, mercado é o dinheiro e vivemos ainda sob a névoa do mito colonial de que o negro que vende, o negro que gera dinheiro é o negro representado por estereótipos e estigmas ligados à escravidão e sua herança maldita (não é preciso dizer que não existe qualquer aspecto bendito nesta seara), ao racismo, à branquitude e seus instrumentos eficazes e também mutantes de inferiorização e subalternização da pessoa negra.

Assim, vemos a cada edição do Salão do Livro Infantil e Juvenil da FNLIJ, número crescente de obras sobre a temática, algumas com tratamento estético belo e arrojado, mas, em larga medida (essas e as demais publicações) desassociadas de um projeto ético que informe a trama, as personagens, as imagens, o lugar de fala da autoria.

Por via de consequência, se em 2003 eram poucas as publicações existentes, em 2015 são muitas, mas há que usar bateia e lupa para separar cascalho num canto e pedras preciosas noutro.

Ainda, há que considerar no campo das publicações bem-intencionadas, a proliferação dos informativos (equivocadamente chamados de paradidáticos, como se fazia no período da ditadura civil-militar) destinados à produção de conforto e acolhimento para sujeitos sociais não hegemônicos (pessoas negras, indígenas, com deficiências, homoafetivas, entre outras), tratados, via de regra, de maneira estanque, alijados de participação em trama social mais abrangente do que sua identidade específica permite, afastados da encruzilhada de identidades que formam um indivíduo, aprisionados em único aspecto dissonante que interessa à publicação, às editoras com seu olhar sectário e às vendas institucionais, de maneira quase sempre simultânea.

Desse modo, somadas as duas vertentes acima mencionadas (os livros oportunistas e os bem-intencionados, cujo objetivo final resulta semelhante), consolida-se uma linha de autoajuda para crianças, nomeada por algumas editoras como literatura, por outras como paradidáticos, que intenta “ensinar” às crianças negras a serem afirmadas, às brancas, como conviver com as questões consideradas negras (problemas decorrentes da falta de amor próprio, condições precárias de vida, aceitação da estética de origem africana, criminalidade). E essa linha, previsivelmente (porque ninguém é inocente no mercado editorial), é afluente caudaloso das compras institucionais de livros realizadas pelo Estado, destinadas à formação de leitores na escola.

Trata-se mesmo de quimera editorial alimentada por um círculo vicioso. 

Portal literafro: Parafraseando a pesquisadora Regina Dalcastagnè, “para que o Brasil precisa de escritora(e)s negros?”

Cidinha da Silva: Para humanizar o Brasil e a literatura. Para integrar estética e ética. Para produzir polifonia no olhar. Para polinizar oralituras mil. Para fazer com que esse país se orgulhe de se ver no espelho africano-diaspórico.

Portal literafro: Nos últimos tempos vemos que grande parte dos escritores negros foca a sua produção em obras destinadas ao publico infantil, isso pode ser atribuída a uma demanda do mercado, ou a um projeto de formação de futuros leitores?

Cidinha da Silva: Caro entrevistador, confesso que você me oferece uma informação nova, desconhecida, não sabia que “grande parte dos escritores negros foca sua produção em obras destinadas ao público infantil na atualidade”. Em verdade, vejo pouca renovação (pode ser por desconhecimento) da literatura destinada a crianças produzida por autoras e autores negros excelentes, mesmo que insuficientemente conhecidos, tais como Edimilson de Almeida Pereira, Inaldete Pinheiro e a falecida Ruth Guimarães; ou mesmo os consagrados, Heloísa Pires Lima, Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio Braz e as incursões pontuais de Elisa Lucinda, Ricardo Aleixo e Ferréz.

Vejo muitos livros de autoajuda produzidos por performers e professoras negras, mas essa larga produção literária que você menciona, feita por escritoras e escritores negros, está distante do meu campo de visão, até gostaria de conhecer.

Quanto à segunda parte da pergunta (alternativas hipotéticas para explicar o problema), posso responder por mim, Cidinha da Silva, e pela obra que estou a construir. Até o momento publiquei 8 livros autorais, 5 de crônicas e 3 para crianças e adolescentes, uma novela, um conto e um romance. Não me enquadro em qualquer das duas alternativas apresentadas por você, ou seja, não viso o mercado editorial, tampouco estou empenhada na formação de futuros leitores, via produção literária, isso para mim é papel do ativismo literário, não do escritor, da escritora na literatura produzida.

Sobre o mercado editorial, não vejo nenhum ilícito em quem o visa desde que, produza literatura. Paulo Mendes Campos, conhecido largamente por sua produção adulta, publicou dezenas de livros infantis pouco divulgados para o grande público, cuja venda institucional deve ter-lhe garantido cruzeiros substanciais para subsidiar a vida material.

Eu não escrevo para o mercado, porque não escrevo para vender, escrevo para materializar minha necessidade de criação. Também não escrevo para formar novos leitores, como já disse, entendo isso como trabalho do ativismo literário. O meu trabalho, minha exigência de ofício é ouvir o texto e dar a ele o formato desejado por ele, o texto. Se o texto quiser ser literatura para crianças e adolescentes, ele será, estou a serviço do texto, da palavra. Quero que estes sejam os únicos entes que me pautem.

 


Referências

AUGUSTO, Ronald. Os escritores negros: além da recepção convencional. In: SILVA, Cidinha da (Org.). Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014. p. 202-210.

DALCASTAGNÈ, Regina. Por que precisamos de escritoras e escritores negros? In: SILVA, Cidinha da (Org.). Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014. p. 66-69.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. O país que desejo ler para meus filhos e filhas. In: SILVA, Cidinha da (Org.). Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014. p. 194-199.

SILVA, Cidinha da. Entrevista. 2015. In: PORTAL BRASIL. Disponível em:

<http://www.brasil.gov.br/cultura/2015/04/palmares-lanca-obra-africanidades-e-relacoes-raciais>. Acesso em: 25 maio 2015.

SILVA, Cidinha da (Org.). Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014.

SILVA, Cidinha da. Prefácio. In: SILVA, Cidinha da (Org.). Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Esta resenha foi publicada na Newsletter n.14 do Literafro – Portal da literatura afro-brasileira. Disponível em: <http://150.164.100.248/literafro/news.asp>.

* Pedro Henrique Souza da Silva é graduando da Faculdade de Letras da UFMG; bolsista de iniciação cientifica pelo Probic/FAPEMIG e pesquisador do Neia/UFMG.

+ sobre o tema

para lembrar

Sesc São Paulo apresenta Mostra de Cinemas Africanos de 5 a 13 de setembro

A Mostra de Cinemas Africanos chega a mais uma...

50 discos para entender o rap

"Me Against The World", de Tupac Shakur, completa 20...

Melhor do mundo, Serena Williams só não consegue derrotar o racismo

Serena Williams tinha 6 anos de idade quando a...

‘Vênus negra’ aborda colonialismo e racismo na Europa

Filme conta história real de sul-africana explorada como atração...
spot_imgspot_img

NÓS: O Poder das Mulheres na Construção da História

No dia 22 de agosto de 2024, o Sesc Interlagos abriu as portas para a exposição NÓS – Arte & Ciência por Mulheres, uma...

Exposições unem artistas de diferentes gerações para resgatar contribuição negra na arte

"Livros sempre mostraram que a nossa história começava a partir da escravização", afirma a curadora Jamile Coelho que ressalta a importância de museus e...

Templo Espírita Ogum Megê passa a ser considerado Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro

O Templo Espírita Ogum Megê, em Vaz Lobo, na Zona Norte, agora é considerado Patrimônio Imaterial do estado do Rio de Janeiro. A iniciativa...
-+=