Análise: Machado de Assis, o gênio na gaiola do racismo

FONTEPor André Ricardo Nunes Martins, do Correio Braziliense
Machado de Assis produziu de tudo: romances, crônicas, crítica, poesia, teatro e contos. (Foto: Juan Gutierrez / Fundação Biblioteca Nacional)

Joaquim Maria Machado de Assis é um dos gênios da literatura brasileira, tendo contribuído na poesia, no romance, no conto, no teatro, na crônica e na crítica. Também liderou a criação da Academia Brasileira de Letras, sendo seu primeiro presidente. Sua figura ímpar cresce ainda mais quando lembramos seu contexto de vida. Autodidata, contou basicamente com seu talento, inteligência e garra pessoal para vencer na vida, sendo de família pobre, mestiço numa sociedade em que o racismo fechava portas e limitava caminhos.

Reafirmo a grandeza e a identidade afro-brasileira do escritor ante a narrativa parcial, toscamente condescendente, pela qual houve contribuição de escravizados e seus descendentes em áreas como culinária, formação do léxico, técnicas agrícolas, ritmos musicais, religião e capoeira. Com Machado de Assis, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocínio e tantos outros — para ficar apenas no século 19 e em poucos expoentes — a presença e o brilhantismo de afro-brasileiros ocorrem também em espaços de prestígio, reservados às elites escravocratas.

Não obstante, Machado de Assis foi um escritor afetado pela cultura racista. Em sua obra, o protagonismo negro é esquecido. Sabe-se que, naquela época, havia afro-brasileiros empreendedores e profissionais liberais, como o engenheiro André Rebouças, que era próximo da família imperial. Por outro lado, Machado chegou a elaborar tipos femininos complexos e interessantes, dando-lhes proeminência, malgrado o caráter machista e patriarcal da sociedade brasileira.

Na obra machadiana, porém, afro-brasileiros estão apenas nos lugares subalternos. São escravizados, alforriados, empregados domésticos, prestadores de serviço. Aliás, um e outro ganham nome. O paternalismo e a condescendência com que são tratados fixam padrão visto até hoje em nossas novelas. “Morava só; tinha um escravo da mesma idade que ele, e cria da casa do pai — mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto” (A mulher de preto in Contos fluminenses, p.65 — para todas as citações aqui: Ed. Globo, 1997). E ainda: “Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregava-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. […] Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente” (Iaiá Garcia, p.3).

Paternalismo imitado por alforriados. Prudêncio, liberto, compra um escravo para si, mas não tolera abusos e intervém para impedir um espancamento em plena via pública (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. 68). No conto Pai contra mãe (Relíquias de Casa Velha), faz-se boa contextualização da ambiência escravocrata. Certa descrição de traços psicológicos de um escravizado lembra-nos o que até recentemente dizia-se de mulheres vítimas de abusos físicos. “Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada e nem todos gostavam de apanhar pancada” (id: p.3). Explicitarei os subentendidos: i) muitos escravos gostavam da escravidão; ii) alguns deles gostavam de apanhar. E castigos físicos não eram frequentes mas eventuais, o que contraria registros na literatura e fora dela.

Em Memórias Póstumas, há um tipo escroque. “O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais” (id.:p.175) Eis aí: (i) A perversidade associada ao escravizado, não ao torturador; (ii) Fugir à servidão é vício e não virtude; (iii) A escravidão como mero “negócio”; (iv) Pegar pesado com quem sai da linha é só “puro efeito de relações sociais”.

Que não se confunda criatura e criador é precaução básica. Que a prosa fique restrita a certos enfoques e tipos evidencia as limitações do escritor. Ora, já então Firmina dos Reis abordava a temática negra, e explorava a causa do momento. Pelo que vemos em seus escritos, Machado não cerra fileiras no movimento abolicionista, nem se irmana a expoentes afro-brasileiros e brancos ou à estudantada das Faculdades de Direito. Lamentavelmente, o que devia ser datado é crítica atualíssima, gaiola em que se encerram expoentes atuais de nossas literatura e teledramaturgia.

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