A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil. O dado é de um levantamento do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, de 2017. Tempo sem pandemia. Mas mesmo com a presença do coronavírus, quem mora nas periferias tem que correr o risco de ser vítima, mais uma vez, da bala.
Ficar em casa pode ser um risco para a vida quando o local pode ser alvo. O Menino João Pedro, de 14 anos, morreu após operação das polícias Federal e Civil, no Rio de Janeiro. As paredes da residência ficaram cravejadas de tiros.
O caso gerou revolta. As imagens de George Floyd, morto no dia 25 de maio nos Estados Unidos, sufocado por mais de oito minutos pelo joelho de um policial, também causaram indignação. Por aqui, aconteceu um estrangulamento em circunstâncias parecidas:um jovem sufocado em Carapicuíba, na Grande São Paulo.
Manifestações acontecem, principalmente na capital paulista, em defesa da democracia, contra o fascismo e contra o racismo. Um dos primeiros atos se reuniu no Largo da Batata, região Oeste de São Paulo. Depois, na avenida Paulista, com a participação de torcidas organizadas. No dia 5 de julho, moradores da Cidade Tiradentes pediram justiça aos seus familiares. Vítimas da bala.
Pra quem ficou em casa, as hashtags e as fotos de bandeiras antifascistas pareceram ser a voz para gritar contra a escalada de tom autoritário do presidente Jair Bolsonaro. Mas, se desde 2017 um jovem negro morre a menos de meia-hora, se este país tem 70% da sua história no regime da escravidão, a pauta deve ser, antes de tudo, antirracista.
Só que antes de ser antifascista, é necessário ser antirracista. E para isso, é necessário aprender com quem é a base da sociedade, com quem é capaz de mudá-la. Alguém que tem em seu olhar a visão da realidade para promover políticas públicas.Alguém com a experiência atravessada pelas opressões e vivências de diversos sistemas. É preciso ouvir a mulher preta da periferia.
Violência policial aumenta no início do ano
Segundo o levantamento feito pela Ponte Jornalismo, o primeiro trimestre de 2020 foi o mais violento da Polícia Militar de São Paulo desde o início da contagem da série histórica, em 1996. A Secretaria de Segurança Pública do estado divulgou que 255 pessoas morreram decorrentes de intervenção policial somente entre janeiro e março.
Foram registrados 218 óbitos envolvendo policiais em serviço e 37 em que o agente estava de folga. Só 202 boletins apontavam a cor da pele das vítimas: 63,8% eram negras (pardos e pretos, segundo a consideração do IBGE).
Maio tem mais mortes
A reportagem do Jornal do Campus apurou os números disponibilizados no Portal da Transparência referentes às mortes envolvendo intervenções policiais da PM no mês de maio e comparou com o mesmo período do ano passado.
Ao todo, foram 54 ocorrências envolvendo policiais em serviço, com 70 mortes registradas. Dessas, 45 eram vidas negras — 21 a mais que no ano passado.
Já o número de ocorrências e de mortes em que os policiais estavam de folga foi menor em relação a 2019. No entanto, das três vidas perdidas em maio deste ano, duas eram negras.
As memórias de maio
O mês de maio tem grande peso na vida de Débora Maria da Silva. E de mais outras mães das periferias da Baixada Santista e da Grande São Paulo. Entre os dias 12 e 26 de maio de 2006, mais 500 pessoas morreram numa retaliação do Estado feita pela PM e por grupos de extermínio. O massacre seria uma resposta aos ataques da facção Primeiro Comando da Capital, que havia matado 59 agentes duas semanas antes, fora o contexto de rebeliões em cadeias do estado.
Um relatório de 2018 feito entre Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo e o Centro Latino-Americano – Escola de Estudos Interdisciplinares e de Área da Universidade de Oxford mostrou que as mortes em regiões de periferia foram as seguintes: a população civil sem nenhum tipo de vínculo com o crime organizado.
Foi meio do fogo cruzado que histórias de pessoas comuns ganharam pontos finais. “Um deles era meu filho. Ele era um gari que no dia do seu assassinato, trabalhou o dia inteiro de atestado médico. Meu filho era preto. Era um gari”, conta Débora. Edson Rogério da Silva Santos trabalhou após fazer uma cirurgia na boca. “Ele era invisível e foi invisível. Mas não foi só meu filho. Eram mais de 600 jovens, mulher grávida na véspera de ganhar neném e também uma jovem no Guarujá que foi executada aos 20 anos”.
Mãe, preta, da periferia, Débora foi uma das pesquisadoras forense e fundadora do Movimento Independente das Mães de Maio que fizeram o relatório. Seu movimento cobra justiça pela execução de jovens na ação de 2006 — no ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou um pedido de indenização para 564 famílias de vítimas dos ataques por considerar que a ação estava fora do prazo legal. Para a Justiça, o luto e a luta deveriam ter sido feitas até o ano de 2011. Mas o mesmo tribunal que apontou demora foi rápido na recusa: a ação do Ministério Público Estadual representado as famílias foi apresentada em abril de 2019 e julgada em novembro do mesmo ano.
Débora criou o movimento sete dias depois de ter deixado o hospital, quando ficou internada depois da morte do filho e por não ter respostas sobre. Ao sair do leito, a mãe foi atrás de mais uma mãe vitimada. E depois de mais uma. E de outra. E de outra. E de mais outras.
Luta de ontem, lutas de hoje
Com 14 anos de movimentação, Débora aplica um olhar cuidadoso ao falar sobre as manifestações de agora, sob o lema “contra o fascismo”, com participações de campos políticos progressistas e partidários. “Antes de ser antifascistas eles deveriam ser antirracistas. Mas nunca foram. Se eles fossem antirracistas, acredito que as políticas implantadas pelo governo de esquerda tinham dado uma resposta aos Crimes de Maio [nome pelo qual ficou conhecido]”, diz.
Débora critica a falta de apoio que a resolução dos Crimes de Maio, que não teve apoio efetivo nas administrações do Partido dos Trabalhadores enquanto governo federal, podendo ter algum apoio dessa esfera para solucionar os crimes estaduais.
“A gente, para poder apoiar esses grupos antifascistas, temos que combater esses fascismos dentro de nós, que bate nas nossas costas e dizem ‘tamo junto, ninguém larga a mão de ninguém’. Mas a gente pergunta: que mão? Que mão que a gente tem que segurar agora se nunca tivemos mão para combater um dos maiores fascismos que teve, que foi a execução no espaço de uma semana de mais de 600 jovens?”, questiona.
O ceticismo e a cautela só abrem espaço para as manifestações que envolvem as torcidas organizadas. A mãe vê nelas o que é essencial para ser uma resposta ao fascismo: combater o racismo. O próprio movimento fundado por ela participou de reuniões com as torcidas Gaviões da Fiel e Pavilhão 9, ligadas ao Corinthians.
“As torcidas tem que se conscientizar que elas têm que ir para as ruas com um único objetivo: antirracista. Temos que travar uma luta antirracista, porque a luta antifascista está sendo na ponta de um fuzil. A escravatura do nosso país está sendo reparada na ponta de um fuzil que tem o alvo certo: preto, pobre, favelado e periférico. Se encontrar com a viatura, é óbito”, aponta.
Retreinamento da Polícia Militar
Depois de vídeos circularem nas redes sociais — como o sufocamento do jovem em Carapicuíba, a abordagem violenta de um homem em Barueri e um outro no Jaçanã, na capital –, o governador João Dória anunciou um “retreinamento” da Polícia Militar.
Procurada para explicar como seriam as formações, a Secretaria de Segurança Pública informou em nota que “iniciou o programa de treinamento envolvendo todos os níveis hierárquicos, visando reforçar os conhecimentos e técnicas da instituição”. Nele, “são abordados conceitos de polícia comunitária, direitos humanos, abordagem policial, gestão de ocorrências, polícia judiciária, entre outros temas”. A nota também informa que foram instaladas 500 câmeras corporais nos uniformes dos agentes “para dar mais transparência às ações da polícia”.
Para Mãe de Maio, a medida é pouco efetiva. Na verdade, ela já foi colocada em prática. “O retreinamento já foi dado quando o Dória fala que a PM não ia mais levar bandido para a cadeia, mas para o cemitério. Desde esse momento, a polícia do estado de São Paulo se tornou bem truculenta”. Ela complementa: “Mas por quê? Quando o Dória e o próprio coronel Camilo se vestem de verde amarelo e vão apoiar o Bolsonaro. Temos uma polícia bolsonarista. O governo deu carta branca para ser essa polícia aí. Nossa campanha era a desmilitarização. Para além: uma não polícia ou uma polícia mais humanizada”.
Em entrevista ao UOL no dia 05 de julho, o ex-corregedor da Polícia Militar, coronel Marcelino Fernandes, afirmou que a violência policial é fruto de João Dória, que incentivou os policiais a irem para confrontos. “Quando tem um evento de morte, não pode incentivar como o governador fez, como ele quer fazer”, disse.
Quem pesquisa e quem mostra
“Eu acredito na força do povo, como mãe negra da periferia que teve seu filho sentenciado dizendo ‘neguinho, morreu, você é ladrão’’. Débora afirma que a população e a educação é o que gerariam uma mudança efetiva. Mas isso também passaria por outros dois campos: a academia e a mídia.
As mortes de maio são constante alvos de pesquisas acadêmicas, segundo a fundadora do movimento Mães de Maio. No entanto, a periferia é vista como objeto descartável. As referências para questões raciais também lhe incomodam: só reconhecem norte-americanos. Autoras como Lélia Gonzalez, ativista e escritora sobre a temática antirracista, ficam em outro plano. Em sua passagem pelo Brasil, em outubro do ano passado, Angela Davis — ativista e participante do movimento dos Panteras Negras, nos EUA –, destacou uma série de autoras negras brasileiras que são referências na discussão antirracista.
Na mesma moeda, a mídia tem seus erros: evidenciar o racismo lá e não citar o daqui. “Bastou um preto americano morrer para que a mídia brasileira trouxesse a palavra racismo, que foi um policial branco que matou o George, ela, ao mesmo tempo, renega que a polícia brasileira também mata. Eles não falam do racismo da polícia brasileira”, analisa.